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Todas as despedidas que vivemos

O conto de hoje tem um sabor especial. Em seis de Junho de 2025, o blog "A Menina e o Sábio" completa DEZ anos de aventuras. Nesses dez anos, eu escrevi mais de 30 contos, alguns poucos desabafos e umas músicas e poemas. Todos esses textos estão registrados em mais de 200 páginas do word. É palavra à beça para uma jornada cheia de desafios. Sei que, às vezes, deixo esse meu espaço meio abandonado, mas eu não estou (e nunca estarei) pronta para abrir mão dele. Eu amo escrever. Ser aspirante a escritora é a parte de mim que eu mais gosto. Como eu já disse para amigos e familiares, pôr o que eu sinto em palavras é a coisa que eu mais gosto na vida. Nada me preenche tanto quanto transbordar poesia em um "papel" em branco. Que sorte a minha ter descoberto tão cedo (para mim, obviamente) a magia que as palavras transmitem. Durante muito tempo quis fazer medicina para salvar vidas, mas, no meio do caminho, entendi que existem outras formas de fazer isso. Escrever e compartilhar o que se escreve é uma delas. Sabia que livros podem ser bons amigos quando a realidade não é tão bonita? Pois é... Muitas vidas foram, são e serão salvas através de todos esses livros que florescem todos os anos nos lugares mais inusitados (já escrevi contos durante o percurso de volta para casa, enquanto o ônibus me fazia balançar de um lado para o outro)... Sabe outro segredo que desvendei ao longo desta incrível jornada? Às vezes, uma história chega às nossas mãos na hora certa. Parece que todo o tempo que demoramos para conhecer um livro específico foi premeditado. Porque só assim para ele ter o efeito preciso sobre nossas vidas... Talvez um dia "A Menina e o Sábio" exerçam esse mesmo papel na vida de alguém. Talvez essa história que é contada aqui há dez anos diga a algum leitor exatamente o que ele precisa ouvir. Sonhar não custa nada, não é mesmo? E não se preocupem, porque eu ainda não terminei de escrever todas as histórias que quero contar sobre meus personagens preferidos. Algumas, inclusive, já estão parcialmente escritas, outras tantas estão apenas na ideia de ser. Vamos juntos por mais 10, 20... 100 anos? Agradeço a todos aqueles que sempre reservam um tempinho para ler meus contos, desabafos, poemas e músicas. Vocês fazem tudo valer à pena! "Kansaminidah" (obrigada em Cacareano). Um agradecimento mais do que especial às minhas melhores leitoras: Deborinha, Tassinha, Mainha e Prisci. Antes de ir, só mais uma coisa: o conto a seguir contou com a colaboração de quatro pessoas incríveis: Ricardo, Camilla, Thaynan e Débora. Pronto, agora terminei! Boa leitura!


Domingo, 23 de Janeiro de 2011

           A festa de formatura do terceiro ano de 2010 do Colégio Inspirar acabara na madrugada de sábado de 22 de Janeiro de 2011. Agora, o único evento que faltava para finalizar de uma vez por todas o ensino médio da turma da Menina e do Menino eram as olímpiadas da cidade, que aconteceriam no final de semana seguinte, dias 29 e 30 de Janeiro. No final da manhã do dia 22, as famílias de Lívia e Francisco pegaram a estrada até a casa de praia dos pais da Menina. Ficariam ali até a semana seguinte, aproveitando o verão do litoral pernambucano. Lívia e Francisco estavam deitados na rede azul – ele estava com o braço direito por trás dela em um abraço frouxo – que ficava pendurada na varanda da casa. Na frente deles, poucos metros à frente, se estendia um mar de águas cristalinas, que parecia não ter fim. Essa imagem era provavelmente a paisagem mais linda que Lívia tivera a oportunidade de apreciar em todos aqueles anos. A Menina vestia um biquíni rosa e um short de tactel lilás e o Menino usava um calção de banho preto e um relógio a prova d’água. Fazia pelo menos 15 minutos que eles tinham saído do mar, o que, com certeza, não era suficiente para secá-los. No entanto, como a rede era de nylon tarrafa impermeável, eles não estavam preocupados em estragá-la. Os demais integrantes daquela grande família ainda aproveitavam a água salgada. De onde estavam, Lívia e Francisco escutavam as conversas paralelas e os gritinhos animados da irmã mais nova da Menina.

– Agora só falta um compromisso antes de a nossa adolescência acabar... – Lamentou o Menino. – Em pouco tempo, seremos calouros. Em pouco tempo, estaremos mais próximos da vida adulta. – A Menina, que mantinha os olhos fechados desde que deitara naquela rede, abriu os olhos e encarou Francisco. Ele não se mexeu, ainda imerso em pensamentos distantes.

– Será que estamos preparados para as aventuras que virão? – Perguntou a Menina. Ao ouvi-la falar, o Menino também abriu os olhos e encarou a Menina.

– Certamente... Não! – Opinou Francisco, Lívia riu. Os dois, então, voltaram a olhar para frente. Aquela paisagem que se estendia diante deles era irresistível.

– Não sei nada sobre a vida adulta, mas eu, com toda certeza, não estou preparada para a competição da semana que vem. Imagina se alguém se machuca e nossa equipe precisa de mim para completar o time de vôlei ou de basquete ou de futsal – Foi a vez de Francisco rir. Serrapilheira, cidade natal dos dois, promovia todo ano olimpíadas para finalizar o ano letivo das escolas (geralmente acontecia no final de Janeiro). Aquele pequeno município se dividia em vários times, que disputavam as medalhas em diferentes modalidades. Do esporte a arte, todo mundo era convidado a participar. Era uma festa como nenhuma outra.

– Pense pelo lado positivo: eu sou um excelente jogador de vôlei e me saio bem nos demais esportes. Se você precisar substituir alguém, eu te darei cobertura. – A Menina riu. – Você já decidiu que música irá tocar na competição de piano?

– Talvez sim, talvez não. É segredo.

– É mesmo? Acho que consigo convencê-la a me contar...

– Tem certeza? Que artimanhas você pretende utilizar?

– Eu tenho muitas cartas na manga...

– É? – Perguntou a Menina, usando um tom de voz um pouquinho diferente. O Menino assentiu. – Não sei se acredito em você. – Francisco chegou mais perto de Lívia e sussurrou algo em seu ouvido. A Menina riu. O Menino se afastou para descobrir se tinha vencido o desafio. – Ainda não me convenceu. – O Menino se aproximou novamente e tentou mais uma vez. Quando ele se afastou, Lívia fez que não com a cabeça. Francisco pensou mais um pouco, tentando encontrar uma maneira de convencê-la – Acho que, dessa vez, você não conseguirá me fazer mudar de ideia.

– Não tenha tanta certeza, Lilica. Posso surpreendê-la! – Então, Francisco se aproximou mais uma vez e propôs algo que sabia que Lívia não resistiria: ler “O teorema do papagaio”, um dos livros preferidos da Menina, um thriller matemático de primeira qualidade.

– Promete? – Lívia ergueu a mão esquerda com o dedo mindinho estendido.

– Prometo! – Francisco selou o acordo. A Menina sorriu e encheu o Namorado de beijos. – Eu amo você! – Disse o Menino entre um beijo e outro.

– Eu amo você. – Respondeu a Menina também entre um beijo e outro. Lívia parou a sequência de beijos e revelou: – E você já pode começar a lê-lo hoje mesmo. Eu trouxe comigo.

– Mas precisa ser agora, agora?

– Agora, agora, não! Mas hoje, sim! – O Menino sorriu ao sentir a felicidade genuína que transbordava da Menina.

– Então... Qual é a música que você irá tocar na competição? – Lívia se aproximou de Francisco e sussurrou em seu ouvido o nome da canção. O Menino não ficou surpreso com a escolha da Menina. A música escolhida era a cara dela. – Será que as pessoas reconhecerão?

– Os outros, eu não sei, mas eu, se você não me dissesse, reconheceria nos primeiros acordes. – Em resposta ao comentário do Menino, a Menina o surpreendeu com um beijo, sendo correspondida por ele. Quando se afastaram, Lívia apoiou a cabeça no ombro de Francisco. Em resposta, o Menino apoiou a cabeça na dela e os dois permaneceram em silêncio até a Menina interrompê-lo.

– Então, você está com medo do final iminente da nossa adolescência? – Perguntou Lívia, retomando a conversa deixada de lado pelos dois poucos minutos antes.

– Um pouco. – Francisco pensou melhor e confessou: – Muito, na verdade.

– Eu também. Vovô Haroldo sempre diz: “nenhuma despedida é imune aos efeitos profundos dos sentimentos, seja qual for o sentimento experenciado no momento em questão”.

– Não tinha pensado no fim do ensino médio como uma despedida... – Comentou Francisco.

– Eu li uma vez que a vida é repleta de despedidas ou de inúmeros recomeços. – O Menino refletiu por um tempo sobre aquelas palavras. Tentou lembrar-se das vezes que precisou dizer adeus, mas não contabilizou todas, porque o Menino ainda não enxergava o sentido mais amplo que a Menina utilizava para a palavra despedida. – À meia-noite, nos despedimos de mais um dia; na virada do Sábado para o Domingo (ou do Domingo para a Segunda, dependendo do país), damos adeus a mais uma semana; – Explicou a Menina – ao fim do mês, deixamos, no máximo, 31 dias para trás; no réveillon, celebramos a chegada de um novo ano; e em doze anos, deixamos o colégio.

– Não sei se chamaria todas essas situações de despedidas...

– Mas elas são... Só não parecem à primeira vista. – A Menina parou por alguns bons segundos, pensando em como colocar o que desejava dizer em palavras. Quando um trecho borrado de algum texto parcialmente esquecido surgiu em sua mente, Lívia logo compartilhou com Francisco: – Por exemplo, quando um dia difícil termina, o nascer do sol (e não sei quem escreveu isso) representa uma possibilidade, uma nova chance. – O Menino escutava o que a Menina dizia com toda a atenção. – É como uma fronteira que separa passado e presente. É uma maneira de o sentimento de esperança ser renovado, sentimento esse de que o presente e o futuro podem ser melhores do que aquilo que aconteceu no dia anterior. – Fazia sentido o que ela dizia. – Você já ouviu falar de Georg Cantor? – Francisco fez que não com a cabeça. – Georg Ferdinand Ludwig Philipp Cantor. – Apresentou a Menina. – Matemático importantíssimo. Os infinitos nunca mais foram os mesmos depois dele. Um gênio criativo que contribuiu desde muito novo, com seus vinte e poucos anos, para a construção do conhecimento. Sua matemática transcendeu os limites da época e ele é um dos grandes da filosofia ocidental. São dele a teoria dos conjuntos, os números transfinitos e a hipótese do continuum1.

– Coisas que eu obviamente entendo! – Brincou o Menino.

– Essa é sua maneira nada delicada de dizer “vá direto ao ponto”?

– Acho que fui bastante sutil.

– Você já procurou a definição de sutileza no dicionário? Porque certamente não aprendeu direito. – Francisco riu.

– Discordo totalmente. Fui delicado o suficiente. – Defendeu-se o Menino. – Voltando ao assunto, o que Cantor tem a ver com as despedidas?

– Tudo a ver! – Francisco desconfiou da resposta de Lívia. Ele a conhecia muito bem.

– Tem realmente algo a ver ou você só citou o nome dele e vários de seus feitos como forma de inserir matemática no meio da conversa de uma forma nada natural? – A Menina riu. Ela realmente fazia isso com frequência, mas não era o caso ou, para ser honesta, talvez fosse.

– De jeito nenhum! Eu nunca faria isso. Você me conhece mutíssimo bem. – Brincou Lívia. Francisco riu. – Foi Cantor que provou que alguns infinitos são maiores do que outros. Por exemplo, entre zero e um existe uma quantidade infinita de números fracionários, assim como entre zero e cem. – O Menino tentou encontrar a ligação entre as duas coisas. Não encontrou.

– E isso realmente tem relação com as despedidas por quê?

– Talvez aconteça o mesmo com as despedidas: algumas são maiores do que outras. – Concluiu a Menina. – Mas nem todo mundo percebe de imediato.

– Ou seja, não há relação alguma entre infinitos e despedidas.

– Claro que há! As despedidas variam de tamanho assim como os infinitos.

– Lilica, admita: você não resistiu à vontade de compartilhar segredos matemáticos comigo!

– Talvez eu tenha usada sim uma licença poética para falar de algo simples, mas foi em nome de um bem maior!

– Que bem maior seria esse?

– Convertê-lo ao time que ama matemática! – O Menino riu.

– Eu já não desgosto de matemática há muito tempo. – Confessou Francisco. Lívia abriu o sorriso mais lindo que o Menino tinha vista em muito tempo.

– Já é um começo. Sabia que meus esforços valeriam a pena. Minha missão não será em vão. – O Menino sorriu ao ver a Menina tão contente. Ela realmente se empenhava quando a matemática estava envolvida. – Sabe o que nem todo mundo enxerga também? – Francisco não respondeu. Preferiu esperar Lívia voltar a falar. Ele sabia que aquela era uma pergunta retórica. – Algumas despedidas são simultâneas. Às vezes, por exemplo, nos despedimos da semana, do ano e de todas as outras possibilidades existentes ao mesmo tempo. Cada uma dessas despedidas está em uma escala de tempo diferente e, talvez, tenha um efeito menor à medida que o tempo aumenta ou varie de situação para situação. Talvez, não exista uma lei de formação capaz de identificar um padrão. – Uma ideia passou pelos pensamentos da Menina, fazendo-a sorrir. – Dá até para ser questão de prova de matemática! – O Menino fez uma careta. A Menina riu. – O professor poderia pedir para calcularmos em quanto tempo o final do ano e da semana coincidirá! Os alunos só precisariam se lembrar de que o ano bissexto acontece de quatro em quatro anos, exceto quando o ano em questão é divisível por quatro e por 100 ao mesmo tempo.

– Não dê essa ideia para ele. – Pediu Francisco. Lívia riu.

– Por que não? Você com certeza acertaria.

– Eu não teria tanta certeza.

– Tudo bem, mas só porque irei usá-la quando for professora. – O Menino sorriu.

– A melhor professora. – Foi a vez de a Menina sorrir.

– Você merece um beijo.

– Só um?

– Estou aberta a negociações! – Francisco se aproximou de Lívia e sussurrou um número em seu ouvido. – A Menina riu.

– Tudo isso?

– Achou ruim? – Provocou Francisco. Em resposta, Lívia deu um beijo no Namorado e depois mais outro e mais outro e mais outro... Demorou algum tempo até os dois se afastarem.

– Quando será que foi a última vez que o primeiro dia do ano coincidiu com o primeiro dia da semana? – Perguntou a Menina, curiosa.

– Deixe-me ver! – O Menino se levantou da rede e foi até o quarto procurar o celular. Estava jogado em cima da cama. Quando voltou, já tinha a resposta na ponta da língua. A Menina se ajeitou para que o Menino pudesse deitar na rede ao lado dela.

– Então? – Perguntou a Menina, empolgada.

– Se considerarmos Domingo como o primeiro dia da semana, 2006; se, por outro lado, considerarmos Segunda, 2007. – Ao observar a expressão da Menina, o Menino sabia que ela queria calcular quando esse “evento” aconteceria novamente.

– Nem pensar.

– Nem pensar o quê?

– Eu sei o que você quer fazer... – A Menina riu.

– O que eu quero não, o que eu já fiz. O início da semana coincidirá com o início do ano em: 2012, 2017 e 2018. Por conta do ano bissexto, o primeiro dia de 2013 cai numa terça-feira; então, o ano de 2012 ficará sem dupla.

– Eu mal comecei a fazer as contas e você já terminou?! Minha Lilica não brinca em serviço. – Sempre que Francisco a chamava assim, Lívia se sentia um tantinho mais amada (e ela já era muitíssimo amada) do que de costume. – O que mais eu não sei sobre despedidas? – Perguntou o Menino retomando a conversa esquecida em algum momento do passado próximo. A Menina pensou um instante e disse:

– Há outros tipos de despedida! – Revelou a Menina. – Algumas duram tempo indeterminado. Por exemplo, quando me despeço de Vicente, não sei quando voltarei a vê-lo. Pode durar uma semana ou mais de dois meses. Não tem como prever.

– Vicente faz muita falta, não é? – A Menina assentiu. – Será que ele virá para as olimpíadas semana que vem?

– Ele disse que sim!

– O que essas despedidas significariam?

– Não sei. – Lívia refletiu um pouco sobre, tentando encontrar a resposta. – Talvez, elas nos ensinem a ter paciência. Talvez, elas nos digam que, às vezes, é preciso esperar um pouco para desfazer a saudade sentida.

– Essas despedidas seriam boas ou ruins?

– Um misto dos dois, talvez? – Ponderou a Menina. – Elas não têm um tempo definido, mas não representam o fim. – Nesse momento, Lívia pensou na Avó Berenice. Perdê-la foi extremamente difícil e doloroso. O adeus não representou o recomeço de algo bonito, e sim um lembrete da imprevisibilidade e finitude da vida. Lívia não precisou dizer uma palavra para Francisco entender o que se passava em seus pensamentos. Ele a abraçou com um pouco mais de força durante um intervalo de tempo de poucos segundos antes de voltar a afrouxá-lo. Esse abraço um pouquinho mais apertado era um lembrete que dizia a Menina que o Menino sempre estaria ao lado dela independentemente da distância física os separasse. Para consolá-la, Francisco disse:

– Lembre-se do que você sempre diz: não representa o fim nem mesmo quando o ponteiro do relógio para de bater. Tenho certeza que na próxima vida ou no intervalo que existe entre uma vida e outra, vocês irão se reencontrar. –  A Menina ficou feliz ao ouvir o Menino repetir as palavras que ela sempre usava quando conversavam sobre a vida. No entanto, em alguns momentos específicos, pontuais e raros, era difícil não enxergar a perda como um fim definitivo, porque, por mais que a próxima vida não esteja assim tão distante, na vida atual, a Avó da Menina não mais compartilhará momentos inesquecíveis com sua família e com seus amigos amados. – Como é aquela frase que você tanto gosta sobre ir além do fim?

– “Vai ser sempre assim: juntos até depois do fim”? – O Menino assentiu. – Você já ouviu falar do gato de Schrödinger?3 – Francisco não sabia se já escutara. – Deixe-me explicar. O gato de Schrödinger é uma experiência mental, frequentemente descrita como um paradoxo. Essa experiência foi desenvolvida pelo físico Erwin Schrödinger, na primeira metade do século XX. Ela consiste em imaginar um gatinho dentro de uma caixa fechada. Nela, está contido um objeto ou uma substância capaz de tirar a vida desse gatinho. – A Menina fez uma pausa na explicação. – Até aqui tudo bem? – Perguntou Lívia para garantir que Francisco compreendera a mensagem que queria transmitir.

– Se o gato não estiver vivo, não está tudo bem. – A Menina riu.

– Francisco, é uma experiência mental! Nenhum gatinho será colocado em risco. – O Menino riu. – Vou reformular a pergunta: até aqui deu para entender? – O Menino assentiu. – Certo. – A Menina organizou as palavras em seus pensamentos para tentar explicar de maneira mais clara possível: – Enquanto a caixa estiver fechada, não é possível afirmar com certeza se o gatinho está vivo ou não, concorda?

– Se ele estivesse vivo, certamente estaria miando! Então, não. Não concordo.

– Você não está me levando a sério... – O Menino riu da expressão de chateação da Menina.

– Não foi intencional. – Disse Francisco, sem conseguir conter o riso. – Continue!

– Concorda ou não?

– Concordo! – A Menina continuava com a expressão de chateação, então o Menino voltou abraçá-la com um pouco mais de força durante alguns segundos e deu um beijo em sua bochecha. Esse abraço mais apertado, que dura pouco tempo antes de voltar a ser frouxo, era uma forma de convencer Lívia a perdoá-lo. Apesar de sua tentativa de manter a pose, Francisco viu um sorriso surgir nos cantos dos lábios de Lívia. Ele amava fazê-la sorrir.

– Onde paramos?

– Na parte em que a caixa está fechada...

– Certo... Nesse momento, enquanto a caixa está fechada, existe uma sobreposição de estados. O gatinho está vivo e morto ao mesmo tempo. – Concluiu a Menina. Lívia se afastou um pouco de Francisco para observar a expressão do Namorado. – Você está fazendo uma careta muito engraçada no momento.

– Estou me perguntando como chegamos a esse ponto da conversa. – A Menina riu. – Eu perdi alguma coisa? Porque em um momento estávamos falando sobre o fim e sobre as vidas que virão e no instante seguinte conversávamos sobre o gato de Schrödinger. – Lívia riu novamente. – Que conexão secreta existe entre o fim e o gato que está preso dentro de uma caixa em um estado vivo-morto?

– Não quer tentar adivinhar? Nem é tão difícil assim! Posso dar uma dica: é sobre a existência de outras vidas, sobre o fim ser ou não definitivo.

– Você tem alguma dúvida sobre a existência de outras vidas? Sobre o fim não ser o ponto final de uma história? – O Menino parecia surpreso. Para ele, a Menina acreditava sem hesitar em outras vidas. Fazia tão parte de Lívia falar sobre o tema que era difícil imaginá-la colocando essa certeza em xeque.

– Não chamaria de dúvida. Diria que é cautela.

– Você não está me ajudando. Estou cada vez mais confuso.

– Pense no fim como o gato de Schrödinger. Enquanto a caixa estiver fechada, existirá uma sobreposição de estados. O fim pode, ao mesmo tempo, ser definitivo, sem chance para recomeços e reencontros, como também pode ser temporário, ou seja, durar o tempo que separa uma vida da outra. – Explicou a Menina. – Por mais que eu acredite em outras vidas, é impossível ter certeza absoluta de que elas realmente existem. É uma possibilidade, assim como não existir também é.

– Você não pensa em descartar a possibilidade de outras vidas não existirem?

– Por que eu faria isso? É tão bom saber que essas duas possibilidades coexistem. Nossas certezas são sempre tão frágeis! Por que eu daria ouvido a elas? – Por mais que a Menina já tivesse reencontrado a Avó em sonhos (reais demais para serem apenas sonhos) mais de uma vez, e por mais que o Menino pudesse enxergar o “outro lado” com certa frequência, um pedaço pequeno de Lívia acreditava que essas provas poderiam ser facilmente refutadas.

– Parece-me sensato não dar ouvido a TODAS as minhas certezas...

– Mas...?

– Mas eu acredito em uma delas sem hesitar...

– Qual?

– Se outras vidas existirem, eu vou encontrar em você o amor romântico todas as vezes.

– Eu não teria tanta certeza. Sou uma garota difícil de conquistar.

– Isso é um desafio? – Lívia assentiu. – Desafio aceito. – Declarou Francisco. – Pode se preparar desde já, então, porque eu sou bastante persistente e vou conquistá-la todas as vezes. – A Menina sorriu.

– Capriche no seu plano, porque eu te darei muito trabalho. – Foi a vez de o Menino sorrir.

– Já tenho mil e uma ideias. – Lívia deu um beijo rápido em Francisco e recebeu outro em troca. Depois de um tempo, a Menina olhou para o Menino e fez um pedido silencioso.

– Que foi?

– Seria possível ganhar mais um abraço apertado? – Francisco abraçou Lívia com força. A Menina sorriu. – Agora trate de lutar contra as fibras do tipo II2! Mesmo que seja uma batalha perdida. – O Menino riu.

– Fibras do tipo II?

– Sim! Tenho lido sobre fisiologia da contração muscular ultimamente. Já que não tenho talento para esporte algum, posso, pelo menos, saber um pouco sobre a fisiologia do exercício. – Francisco riu novamente.

– Justo! – Concordou o Menino – E o que você descobriu até agora?

– As fibras mais finas são do tipo um e estão adaptadas para atividades sustentadas que exigem geração de tensão submáxima4. Elas são de contração lenta. As fibras mais grossas são do tipo IIB e estão adaptadas a explosões curtas de atividade quase máxima (apesar de permitirem contrações mais fortes, essas contrações duram menos tempo)2,4 Portanto, acho justo você convencer as fibras do tipo dois a me manterem em um abraço apertado pelo máximo intervalo de tempo possível (o que não será muito, obviamente). – Explicou a Menina. – Quando não tiver mais como sustentar a isomeria, você pode se render as fibras do tipo um2.  Será um abraço mais fraco, mas se estenderá por um intervalo de tempo mais longo.

– Quanto tempo você acha que consigo manter o abraço apertado? – Lívia pensou um pouco a respeito e logo uma ideia surgiu em seus pensamentos.

– Já sei o que podemos fazer! – Francisco esperou Lívia voltar a falar. – Vamos cronometrar. No três: um, dois...

 

1As informações sobre Cantor foram compartilhadas comigo pelo Professor Ricardo Campello de Souza.

2Para escrever esse pequeno trecho sobre a musculatura esquelética, tive a ajuda de Débora Oliveira e Thaynan Oliveira, minhas amigas incríveis. Meninas, agradeço por vocês sempre responderem minhas perguntas malucas e aleatórias.

3Para escrever sobre a sobreposição dos dois estados do “fim”, eu consultei Quemilla Mahon, minha amiga maravilhosa, para saber se fazia sentido o que eu gostaria de dizer através desse conto. Ela disse que achou poético. Então, decidi acreditar em suas palavras. Obrigada, Quemilla! 

4HOPKINS, Philip M. Skeletal muscle physiology. Continuing Education in Anaesthesia, Critical Care & Pain, v. 6, n. 1, p. 1-6, 2006.

 



Comentários

Danielle disse…
Que lindo, convivência com você quanto eu sei que você adora ler e escrever. O conto é lindo. Parabéns, você merece tudo de bom! Você sempre foi dedicada em escrever! 👏🥰
Chaconerrilla disse…
Muito origada pelas palavras. Eu realmente amo escrever. Tudo faz sentido quando coloco o meu coração em palavras!

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