O conto de hoje tem um sabor especial. Em seis de Junho de 2025, o blog "A Menina e o Sábio" completa DEZ anos de aventuras. Nesses dez anos, eu escrevi mais de 30 contos, alguns poucos desabafos e umas músicas e poemas. Todos esses textos estão registrados em mais de 200 páginas do word. É palavra à beça para uma jornada cheia de desafios. Sei que, às vezes, deixo esse meu espaço meio abandonado, mas eu não estou (e nunca estarei) pronta para abrir mão dele. Eu amo escrever. Ser aspirante a escritora é a parte de mim que eu mais gosto. Como eu já disse para amigos e familiares, pôr o que eu sinto em palavras é a coisa que eu mais gosto na vida. Nada me preenche tanto quanto transbordar poesia em um "papel" em branco. Que sorte a minha ter descoberto tão cedo (para mim, obviamente) a magia que as palavras transmitem. Durante muito tempo quis fazer medicina para salvar vidas, mas, no meio do caminho, entendi que existem outras formas de fazer isso. Escrever e compartilhar o que se escreve é uma delas. Sabia que livros podem ser bons amigos quando a realidade não é tão bonita? Pois é... Muitas vidas foram, são e serão salvas através de todos esses livros que florescem todos os anos nos lugares mais inusitados (já escrevi contos durante o percurso de volta para casa, enquanto o ônibus me fazia balançar de um lado para o outro)... Sabe outro segredo que desvendei ao longo desta incrível jornada? Às vezes, uma história chega às nossas mãos na hora certa. Parece que todo o tempo que demoramos para conhecer um livro específico foi premeditado. Porque só assim para ele ter o efeito preciso sobre nossas vidas... Talvez um dia "A Menina e o Sábio" exerçam esse mesmo papel na vida de alguém. Talvez essa história que é contada aqui há dez anos diga a algum leitor exatamente o que ele precisa ouvir. Sonhar não custa nada, não é mesmo? E não se preocupem, porque eu ainda não terminei de escrever todas as histórias que quero contar sobre meus personagens preferidos. Algumas, inclusive, já estão parcialmente escritas, outras tantas estão apenas na ideia de ser. Vamos juntos por mais 10, 20... 100 anos? Agradeço a todos aqueles que sempre reservam um tempinho para ler meus contos, desabafos, poemas e músicas. Vocês fazem tudo valer à pena! "Kansaminidah" (obrigada em Cacareano). Um agradecimento mais do que especial às minhas melhores leitoras: Deborinha, Tassinha, Mainha e Prisci. Antes de ir, só mais uma coisa: o conto a seguir contou com a colaboração de quatro pessoas incríveis: Ricardo, Camilla, Thaynan e Débora. Pronto, agora terminei! Boa leitura!
Domingo,
23 de Janeiro de 2011
A festa de formatura do terceiro ano de 2010 do Colégio Inspirar acabara na madrugada de sábado de 22 de Janeiro de 2011. Agora, o único evento que faltava para finalizar de uma vez por todas o ensino médio da turma da Menina e do Menino eram as olímpiadas da cidade, que aconteceriam no final de semana seguinte, dias 29 e 30 de Janeiro. No final da manhã do dia 22, as famílias de Lívia e Francisco pegaram a estrada até a casa de praia dos pais da Menina. Ficariam ali até a semana seguinte, aproveitando o verão do litoral pernambucano. Lívia e Francisco estavam deitados na rede azul – ele estava com o braço direito por trás dela em um abraço frouxo – que ficava pendurada na varanda da casa. Na frente deles, poucos metros à frente, se estendia um mar de águas cristalinas, que parecia não ter fim. Essa imagem era provavelmente a paisagem mais linda que Lívia tivera a oportunidade de apreciar em todos aqueles anos. A Menina vestia um biquíni rosa e um short de tactel lilás e o Menino usava um calção de banho preto e um relógio a prova d’água. Fazia pelo menos 15 minutos que eles tinham saído do mar, o que, com certeza, não era suficiente para secá-los. No entanto, como a rede era de nylon tarrafa impermeável, eles não estavam preocupados em estragá-la. Os demais integrantes daquela grande família ainda aproveitavam a água salgada. De onde estavam, Lívia e Francisco escutavam as conversas paralelas e os gritinhos animados da irmã mais nova da Menina.
– Agora
só falta um compromisso antes de a nossa adolescência acabar... – Lamentou o
Menino. – Em pouco tempo, seremos calouros. Em pouco tempo, estaremos mais
próximos da vida adulta. – A Menina, que mantinha os olhos fechados desde que
deitara naquela rede, abriu os olhos e encarou Francisco. Ele não se mexeu,
ainda imerso em pensamentos distantes.
– Será
que estamos preparados para as aventuras que virão? – Perguntou a Menina. Ao
ouvi-la falar, o Menino também abriu os olhos e encarou a Menina.
–
Certamente... Não! – Opinou Francisco, Lívia riu. Os dois, então, voltaram a
olhar para frente. Aquela paisagem que se estendia diante deles era
irresistível.
– Não
sei nada sobre a vida adulta, mas eu, com toda certeza, não estou preparada
para a competição da semana que vem. Imagina se alguém se machuca e nossa
equipe precisa de mim para completar o time de vôlei ou de basquete ou de
futsal – Foi a vez de Francisco rir. Serrapilheira, cidade natal dos dois,
promovia todo ano olimpíadas para finalizar o ano letivo das escolas
(geralmente acontecia no final de Janeiro). Aquele pequeno município se dividia
em vários times, que disputavam as medalhas em diferentes modalidades. Do
esporte a arte, todo mundo era convidado a participar. Era uma festa como
nenhuma outra.
– Pense
pelo lado positivo: eu sou um excelente jogador de vôlei e me saio bem nos
demais esportes. Se você precisar substituir alguém, eu te darei cobertura. – A
Menina riu. – Você já decidiu que música irá tocar na competição de piano?
– Talvez
sim, talvez não. É segredo.
– É
mesmo? Acho que consigo convencê-la a me contar...
– Tem
certeza? Que artimanhas você pretende utilizar?
– Eu
tenho muitas cartas na manga...
– É? –
Perguntou a Menina, usando um tom de voz um pouquinho diferente. O Menino
assentiu. – Não sei se acredito em você. – Francisco chegou mais perto de Lívia
e sussurrou algo em seu ouvido. A Menina riu. O Menino se afastou para
descobrir se tinha vencido o desafio. – Ainda não me convenceu. – O Menino se
aproximou novamente e tentou mais uma vez. Quando ele se afastou, Lívia fez que
não com a cabeça. Francisco pensou mais um pouco, tentando encontrar uma
maneira de convencê-la – Acho que, dessa vez, você não conseguirá me fazer
mudar de ideia.
– Não
tenha tanta certeza, Lilica. Posso surpreendê-la! – Então, Francisco se
aproximou mais uma vez e propôs algo que sabia que Lívia não resistiria: ler “O
teorema do papagaio”, um dos livros preferidos da Menina, um thriller
matemático de primeira qualidade.
–
Promete? – Lívia ergueu a mão esquerda com o dedo mindinho estendido.
–
Prometo! – Francisco selou o acordo. A Menina sorriu e encheu o Namorado de
beijos. – Eu amo você! – Disse o Menino entre um beijo e outro.
– Eu amo
você. – Respondeu a Menina também entre um beijo e outro. Lívia parou a
sequência de beijos e revelou: – E você já pode começar a lê-lo hoje mesmo. Eu
trouxe comigo.
– Mas
precisa ser agora, agora?
– Agora,
agora, não! Mas hoje, sim! – O Menino sorriu ao sentir a felicidade genuína que
transbordava da Menina.
–
Então... Qual é a música que você irá tocar na competição? – Lívia se aproximou
de Francisco e sussurrou em seu ouvido o nome da canção. O Menino não ficou
surpreso com a escolha da Menina. A música escolhida era a cara dela. – Será
que as pessoas reconhecerão?
– Os
outros, eu não sei, mas eu, se você não me dissesse, reconheceria nos primeiros
acordes. – Em resposta ao comentário do Menino, a Menina o surpreendeu com um
beijo, sendo correspondida por ele. Quando se afastaram, Lívia apoiou a cabeça
no ombro de Francisco. Em resposta, o Menino apoiou a cabeça na dela e os dois
permaneceram em silêncio até a Menina interrompê-lo.
– Então,
você está com medo do final iminente da nossa adolescência? – Perguntou Lívia,
retomando a conversa deixada de lado pelos dois poucos minutos antes.
– Um
pouco. – Francisco pensou melhor e confessou: – Muito, na verdade.
– Eu
também. Vovô Haroldo sempre diz: “nenhuma despedida é imune aos efeitos
profundos dos sentimentos, seja qual for o sentimento experenciado no momento
em questão”.
– Não
tinha pensado no fim do ensino médio como uma despedida... – Comentou
Francisco.
– Eu li
uma vez que a vida é repleta de despedidas ou de inúmeros recomeços. – O Menino
refletiu por um tempo sobre aquelas palavras. Tentou lembrar-se das vezes que
precisou dizer adeus, mas não contabilizou todas, porque o Menino ainda não
enxergava o sentido mais amplo que a Menina utilizava para a palavra despedida.
– À meia-noite, nos despedimos de mais um dia; na virada do Sábado para o
Domingo (ou do Domingo para a Segunda, dependendo do país), damos adeus a mais
uma semana; – Explicou a Menina – ao fim do mês, deixamos, no máximo, 31 dias
para trás; no réveillon, celebramos a chegada de um novo ano; e em doze anos,
deixamos o colégio.
– Não
sei se chamaria todas essas situações de despedidas...
– Mas
elas são... Só não parecem à primeira vista. – A Menina parou por alguns bons
segundos, pensando em como colocar o que desejava dizer em palavras. Quando um
trecho borrado de algum texto parcialmente esquecido surgiu em sua mente, Lívia
logo compartilhou com Francisco: – Por exemplo, quando um dia difícil termina,
o nascer do sol (e não sei quem escreveu isso) representa uma possibilidade,
uma nova chance. – O Menino escutava o que a Menina dizia com toda a atenção. –
É como uma fronteira que separa passado e presente. É uma maneira de o
sentimento de esperança ser renovado, sentimento esse de que o presente e o
futuro podem ser melhores do que aquilo que aconteceu no dia anterior. – Fazia
sentido o que ela dizia. – Você já ouviu falar de Georg Cantor? – Francisco fez
que não com a cabeça. – Georg Ferdinand Ludwig Philipp Cantor. – Apresentou a
Menina. – Matemático importantíssimo. Os infinitos nunca mais foram os mesmos
depois dele. Um gênio criativo que contribuiu desde muito novo, com seus vinte
e poucos anos, para a construção do conhecimento. Sua matemática transcendeu os
limites da época e ele é um dos grandes da filosofia ocidental. São dele a
teoria dos conjuntos, os números transfinitos e a hipótese do continuum1.
– Coisas
que eu obviamente entendo! – Brincou o Menino.
– Essa é
sua maneira nada delicada de dizer “vá direto ao ponto”?
– Acho
que fui bastante sutil.
– Você
já procurou a definição de sutileza no dicionário? Porque certamente não
aprendeu direito. – Francisco riu.
–
Discordo totalmente. Fui delicado o suficiente. – Defendeu-se o Menino. –
Voltando ao assunto, o que Cantor tem a ver com as despedidas?
– Tudo a
ver! – Francisco desconfiou da resposta de Lívia. Ele a conhecia muito bem.
– Tem
realmente algo a ver ou você só citou o nome dele e vários de seus feitos como
forma de inserir matemática no meio da conversa de uma forma nada natural? – A
Menina riu. Ela realmente fazia isso com frequência, mas não era o caso ou,
para ser honesta, talvez fosse.
– De
jeito nenhum! Eu nunca faria isso. Você me conhece mutíssimo bem. – Brincou
Lívia. Francisco riu. – Foi Cantor que provou que alguns infinitos são maiores
do que outros. Por exemplo, entre zero e um existe uma quantidade infinita de
números fracionários, assim como entre zero e cem. – O Menino tentou encontrar
a ligação entre as duas coisas. Não encontrou.
– E isso
realmente tem relação com as despedidas por quê?
– Talvez
aconteça o mesmo com as despedidas: algumas são maiores do que outras. –
Concluiu a Menina. – Mas nem todo mundo percebe de imediato.
– Ou
seja, não há relação alguma entre infinitos e despedidas.
– Claro
que há! As despedidas variam de tamanho assim como os infinitos.
–
Lilica, admita: você não resistiu à vontade de compartilhar segredos
matemáticos comigo!
– Talvez
eu tenha usada sim uma licença poética para falar de algo simples, mas foi em
nome de um bem maior!
– Que
bem maior seria esse?
–
Convertê-lo ao time que ama matemática! – O Menino riu.
– Eu já
não desgosto de matemática há muito tempo. – Confessou Francisco. Lívia abriu o
sorriso mais lindo que o Menino tinha vista em muito tempo.
– Já é
um começo. Sabia que meus esforços valeriam a pena. Minha missão não será em
vão. – O Menino sorriu ao ver a Menina tão contente. Ela realmente se empenhava
quando a matemática estava envolvida. – Sabe o que nem todo mundo enxerga
também? – Francisco não respondeu. Preferiu esperar Lívia voltar a falar. Ele
sabia que aquela era uma pergunta retórica. – Algumas despedidas são
simultâneas. Às vezes, por exemplo, nos despedimos da semana, do ano e de todas
as outras possibilidades existentes ao mesmo tempo. Cada uma dessas despedidas
está em uma escala de tempo diferente e, talvez, tenha um efeito menor à medida
que o tempo aumenta ou varie de situação para situação. Talvez, não exista uma
lei de formação capaz de identificar um padrão. – Uma ideia passou pelos
pensamentos da Menina, fazendo-a sorrir. – Dá até para ser questão de prova de
matemática! – O Menino fez uma careta. A Menina riu. – O professor poderia
pedir para calcularmos em quanto tempo o final do ano e da semana coincidirá!
Os alunos só precisariam se lembrar de que o ano bissexto acontece de quatro em
quatro anos, exceto quando o ano em questão é divisível por quatro e por 100 ao
mesmo tempo.
– Não dê
essa ideia para ele. – Pediu Francisco. Lívia riu.
– Por
que não? Você com certeza acertaria.
– Eu não
teria tanta certeza.
– Tudo
bem, mas só porque irei usá-la quando for professora. – O Menino sorriu.
– A
melhor professora. – Foi a vez de a Menina sorrir.
– Você
merece um beijo.
– Só um?
– Estou
aberta a negociações! – Francisco se aproximou de Lívia e sussurrou um número
em seu ouvido. – A Menina riu.
– Tudo
isso?
– Achou
ruim? – Provocou Francisco. Em resposta, Lívia deu um beijo no Namorado e
depois mais outro e mais outro e mais outro... Demorou algum tempo até os dois
se afastarem.
– Quando
será que foi a última vez que o primeiro dia do ano coincidiu com o primeiro
dia da semana? – Perguntou a Menina, curiosa.
–
Deixe-me ver! – O Menino se levantou da rede e foi até o quarto procurar o
celular. Estava jogado em cima da cama. Quando voltou, já tinha a resposta na
ponta da língua. A Menina se ajeitou para que o Menino pudesse deitar na rede
ao lado dela.
– Então?
– Perguntou a Menina, empolgada.
– Se
considerarmos Domingo como o primeiro dia da semana, 2006; se, por outro lado,
considerarmos Segunda, 2007. – Ao observar a expressão da Menina, o Menino
sabia que ela queria calcular quando esse “evento” aconteceria novamente.
– Nem
pensar.
– Nem
pensar o quê?
– Eu sei
o que você quer fazer... – A Menina riu.
– O que
eu quero não, o que eu já fiz. O início da semana coincidirá com o início do
ano em: 2012, 2017 e 2018. Por conta do ano bissexto, o primeiro dia de 2013
cai numa terça-feira; então, o ano de 2012 ficará sem dupla.
– Eu mal
comecei a fazer as contas e você já terminou?! Minha Lilica não brinca em
serviço. – Sempre que Francisco a chamava assim, Lívia se sentia um tantinho
mais amada (e ela já era muitíssimo amada) do que de costume. – O que mais eu
não sei sobre despedidas? – Perguntou o Menino retomando a conversa esquecida
em algum momento do passado próximo. A Menina pensou um instante e disse:
– Há
outros tipos de despedida! – Revelou a Menina. – Algumas duram tempo
indeterminado. Por exemplo, quando me despeço de Vicente, não sei quando
voltarei a vê-lo. Pode durar uma semana ou mais de dois meses. Não tem como
prever.
–
Vicente faz muita falta, não é? – A Menina assentiu. – Será que ele virá para
as olimpíadas semana que vem?
– Ele
disse que sim!
– O que
essas despedidas significariam?
– Não
sei. – Lívia refletiu um pouco sobre, tentando encontrar a resposta. – Talvez,
elas nos ensinem a ter paciência. Talvez, elas nos digam que, às vezes, é
preciso esperar um pouco para desfazer a saudade sentida.
– Essas
despedidas seriam boas ou ruins?
– Um misto dos dois, talvez? – Ponderou a Menina. –
Elas não têm um tempo definido, mas não representam o fim. – Nesse momento,
Lívia pensou na Avó Berenice. Perdê-la foi extremamente difícil e doloroso. O
adeus não representou o recomeço de algo bonito, e sim um lembrete da
imprevisibilidade e finitude da vida. Lívia não precisou dizer uma palavra para
Francisco entender o que se passava em seus pensamentos. Ele a abraçou com um
pouco mais de força durante um intervalo de tempo de poucos segundos antes de
voltar a afrouxá-lo. Esse abraço um pouquinho mais apertado era um lembrete que
dizia a Menina que o Menino sempre estaria ao lado dela independentemente da
distância física os separasse. Para consolá-la, Francisco disse:
–
Lembre-se do que você sempre diz: não representa o fim nem mesmo quando o
ponteiro do relógio para de bater. Tenho certeza que na próxima vida ou no
intervalo que existe entre uma vida e outra, vocês irão se reencontrar. – A Menina ficou feliz ao ouvir o Menino
repetir as palavras que ela sempre usava quando conversavam sobre a vida. No
entanto, em alguns momentos específicos, pontuais e raros, era difícil não
enxergar a perda como um fim definitivo, porque, por mais que a próxima vida
não esteja assim tão distante, na vida atual, a Avó da Menina não mais
compartilhará momentos inesquecíveis com sua família e com seus amigos amados.
– Como é aquela frase que você tanto gosta sobre ir além do fim?
– “Vai
ser sempre assim: juntos até depois do fim”? – O Menino assentiu. – Você já
ouviu falar do gato de Schrödinger?3 – Francisco não sabia se já
escutara. – Deixe-me explicar. O gato de Schrödinger é uma experiência mental,
frequentemente descrita como um paradoxo. Essa experiência foi desenvolvida
pelo físico Erwin Schrödinger, na primeira metade do século XX. Ela consiste em
imaginar um gatinho dentro de uma caixa fechada. Nela, está contido um objeto
ou uma substância capaz de tirar a vida desse gatinho. – A Menina fez uma pausa
na explicação. – Até aqui tudo bem? – Perguntou Lívia para garantir que Francisco
compreendera a mensagem que queria transmitir.
– Se o
gato não estiver vivo, não está tudo bem. – A Menina riu.
–
Francisco, é uma experiência mental! Nenhum gatinho será colocado em risco. – O
Menino riu. – Vou reformular a pergunta: até aqui deu para entender? – O Menino
assentiu. – Certo. – A Menina organizou as palavras em seus pensamentos para
tentar explicar de maneira mais clara possível: – Enquanto a caixa estiver
fechada, não é possível afirmar com certeza se o gatinho está vivo ou não,
concorda?
– Se ele
estivesse vivo, certamente estaria miando! Então, não. Não concordo.
– Você
não está me levando a sério... – O Menino riu da expressão de chateação da
Menina.
– Não
foi intencional. – Disse Francisco, sem conseguir conter o riso. – Continue!
– Concorda
ou não?
–
Concordo! – A Menina continuava com a expressão de chateação, então o Menino
voltou abraçá-la com um pouco mais de força durante alguns segundos e deu um
beijo em sua bochecha. Esse abraço mais apertado, que dura pouco tempo antes de
voltar a ser frouxo, era uma forma de convencer Lívia a perdoá-lo. Apesar de
sua tentativa de manter a pose, Francisco viu um sorriso surgir nos cantos dos
lábios de Lívia. Ele amava fazê-la sorrir.
– Onde
paramos?
– Na
parte em que a caixa está fechada...
–
Certo... Nesse momento, enquanto a caixa está fechada, existe uma sobreposição
de estados. O gatinho está vivo e morto ao mesmo tempo. – Concluiu a Menina.
Lívia se afastou um pouco de Francisco para observar a expressão do Namorado. –
Você está fazendo uma careta muito engraçada no momento.
– Estou
me perguntando como chegamos a esse ponto da conversa. – A Menina riu. – Eu
perdi alguma coisa? Porque em um momento estávamos falando sobre o fim e sobre
as vidas que virão e no instante seguinte conversávamos sobre o gato de Schrödinger.
– Lívia riu novamente. – Que conexão secreta existe entre o fim e o gato que
está preso dentro de uma caixa em um estado vivo-morto?
– Não
quer tentar adivinhar? Nem é tão difícil assim! Posso dar uma dica: é sobre a
existência de outras vidas, sobre o fim ser ou não definitivo.
– Você
tem alguma dúvida sobre a existência de outras vidas? Sobre o fim não ser o
ponto final de uma história? – O Menino parecia surpreso. Para ele, a Menina
acreditava sem hesitar em outras vidas. Fazia tão parte de Lívia falar sobre o
tema que era difícil imaginá-la colocando essa certeza em xeque.
– Não
chamaria de dúvida. Diria que é cautela.
– Você
não está me ajudando. Estou cada vez mais confuso.
– Pense
no fim como o gato de Schrödinger. Enquanto a caixa estiver fechada, existirá uma
sobreposição de estados. O fim pode, ao mesmo tempo, ser definitivo, sem chance
para recomeços e reencontros, como também pode ser temporário, ou seja, durar o
tempo que separa uma vida da outra. – Explicou a Menina. – Por mais que eu
acredite em outras vidas, é impossível ter certeza absoluta de que elas
realmente existem. É uma possibilidade, assim como não existir também é.
– Você
não pensa em descartar a possibilidade de outras vidas não existirem?
– Por
que eu faria isso? É tão bom saber que essas duas possibilidades coexistem.
Nossas certezas são sempre tão frágeis! Por que eu daria ouvido a elas? – Por
mais que a Menina já tivesse reencontrado a Avó em sonhos (reais demais para
serem apenas sonhos) mais de uma vez, e por mais que o Menino pudesse enxergar
o “outro lado” com certa frequência, um pedaço pequeno de Lívia acreditava que
essas provas poderiam ser facilmente refutadas.
–
Parece-me sensato não dar ouvido a TODAS as minhas certezas...
–
Mas...?
– Mas eu
acredito em uma delas sem hesitar...
– Qual?
– Se
outras vidas existirem, eu vou encontrar em você o amor romântico todas as
vezes.
– Eu não
teria tanta certeza. Sou uma garota difícil de conquistar.
– Isso é
um desafio? – Lívia assentiu. – Desafio aceito. – Declarou Francisco. – Pode se
preparar desde já, então, porque eu sou bastante persistente e vou conquistá-la
todas as vezes. – A Menina sorriu.
–
Capriche no seu plano, porque eu te darei muito trabalho. – Foi a vez de o
Menino sorrir.
– Já
tenho mil e uma ideias. – Lívia deu um beijo rápido em Francisco e recebeu
outro em troca. Depois de um tempo, a Menina olhou para o Menino e fez um
pedido silencioso.
– Que
foi?
– Seria
possível ganhar mais um abraço apertado? – Francisco abraçou Lívia com força. A
Menina sorriu. – Agora trate de lutar contra as fibras do tipo II2!
Mesmo que seja uma batalha perdida. – O Menino riu.
– Fibras
do tipo II?
– Sim!
Tenho lido sobre fisiologia da contração muscular ultimamente. Já que não tenho
talento para esporte algum, posso, pelo menos, saber um pouco sobre a
fisiologia do exercício. – Francisco riu novamente.
– Justo!
– Concordou o Menino – E o que você descobriu até agora?
– As
fibras mais finas são do tipo um e estão adaptadas para atividades sustentadas
que exigem geração de tensão submáxima4. Elas são de contração lenta.
As fibras mais grossas são do tipo IIB e estão adaptadas a explosões curtas de
atividade quase máxima (apesar de permitirem contrações mais fortes, essas
contrações duram menos tempo)2,4 Portanto, acho justo você convencer
as fibras do tipo dois a me manterem em um abraço apertado pelo máximo
intervalo de tempo possível (o que não será muito, obviamente). – Explicou a
Menina. – Quando não tiver mais como sustentar a isomeria, você pode se render
as fibras do tipo um2. Será
um abraço mais fraco, mas se estenderá por um intervalo de tempo mais longo.
– Quanto
tempo você acha que consigo manter o abraço apertado? – Lívia pensou um pouco a
respeito e logo uma ideia surgiu em seus pensamentos.
– Já sei
o que podemos fazer! – Francisco esperou Lívia voltar a falar. – Vamos
cronometrar. No três: um, dois...
1As informações sobre Cantor foram compartilhadas comigo
pelo Professor Ricardo Campello de Souza.
2Para escrever esse pequeno trecho sobre a musculatura
esquelética, tive a ajuda de Débora Oliveira e Thaynan Oliveira, minhas amigas
incríveis. Meninas, agradeço por vocês sempre responderem minhas perguntas
malucas e aleatórias.
3Para escrever sobre a sobreposição dos dois estados do
“fim”, eu consultei Quemilla Mahon, minha amiga maravilhosa, para saber se
fazia sentido o que eu gostaria de dizer através desse conto. Ela disse que
achou poético. Então, decidi acreditar em suas palavras. Obrigada, Quemilla!
4HOPKINS, Philip M. Skeletal
muscle physiology. Continuing Education in Anaesthesia, Critical Care &
Pain, v. 6, n. 1, p. 1-6, 2006.
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