Dedicado ao meu Professor Gilberto, que junto a Kenia e Maria Betania, tornou possível a divulgação do primeiro conto de "A Menina & O Sábio".
A Menina & o Sábio – Memórias de duas vidas
Todos aqueles que ali estavam presentes dez minutos atrás,
agora se faziam ausentes. Apenas o Sábio permanecia onde estava desde o fim da
tarde. Ele se despedia do seu neto mais jovem uma última vez, dizendo palavras
que a Menina não podia escutar. Sabendo que aquele era um momento particular,
ela permaneceu afastada, observando o Sábio de longe. Ele beijou a ponta dos
dedos da mão esquerda e deu dois toquinhos na lápide. O epitáfio dizia “mais do
que as palavras ou as estrelas podem dizer”. Quando virou, o Sábio, mesmo
longe, conseguiu avistar a Menina. Alívio passou pelos seus olhos, hoje
tristes. Ele enxugou as lágrimas com o lenço que trazia no paletó e se dirigiu
a Menina.
- Oi, Doce Menina! Acho que você já soube das últimas
notícias. – Disse o Sábio meio sem graça por parecer, ou melhor, por estar tão
fragilizado.
- O Vento sussurrou mais cedo. Ele me disse que o Senhor,
meu Amigo, seria o último a sair e que, se eu quisesse, poderia lhe fazer uma
visita. – Disse a Menina em um tom diferente do seu habitual, sentindo tudo o
que ele, o Sábio, estava sentindo.
- Agradeça ao Vento por mim mais tarde.
- Por que você mesmo não faz isso? Tenho certeza que ele o
escutará. – O Sábio sorriu um pouco.
- Acho que você tem razão. – Dito isso, o Sábio fechou os
olhos e fez um agradecimento silencioso ao Vento. Ela sabia que ele precisava
de um pouco de silêncio enquanto agradecia ao vento, usando, a Menina sabia,
palavras doces de gratidão inenarrável. Algum tempo depois, não contado pelo
relógio do Sábio, ele abriu os olhos e sentou-se em um banco perto de onde a
Menina estava. Ela fez o mesmo, ajeitando antes o vestido. – Sou muito grato ao
Vento, Doce Menina, mas sou também grato a você, por vir até aqui me ver. – A
Menina sorriu um pouco.
- Sempre que precisar, eu estarei por perto, Amigo Sábio. –
Ele assentiu, sabendo que a Menina falava a verdade. Ela sempre estaria, caso
ele precisasse.
- Então, nesta noite sem estrelas e de Lua Nova, o que a
Menina tem a me dizer? – Ela não respondeu de imediato. Olhou para o céu
primeiro para saber se a noite era tão sem luz como Sábio descrevera. Ele
estava certo. As estrelas estavam tímidas e a lua era muito nova para preencher
o céu com luz.
- O que você acha que eu tenho pra dizer, nobre Sábio? –
Perguntou a Menina curiosa. Nada a deixava mais ansiosa.
- Com certeza, nada óbvio. Nada que outra menina diria. –
Respondeu o Sábio, menos triste. A Menina sorriu.
- Vamos passear! Você pode dirigir? – A Menina olhava para
ele, esperando a, já conhecida por ela, resposta. O Sábio foi pego de surpresa.
- Aonde iremos? – Perguntou ele, levantando e dirigindo-se
ao carro mais antigo do estacionamento.
- Vamos descobrir juntos. – Respondeu a Menina que, assim
como o Sábio, estava menos triste. O Sábio não pareceu se importar com o
destino incerto. Na verdade, ele gostara da ideia. Era um tanto diferente do
que ele imaginara.
À medida que a Menina guiava o destino dos dois, o Sábio se
sentia mais ansioso. Ele queria saber para onde a Menina o estava levando.
Depois de menos do que você pode imaginar, o Sábio estacionou em um parque de
diversões que hoje estava fechado. Ele não sabia como entrariam, mas imaginava
que a Menina tinha consigo a resposta.
- Não se preocupe, não vamos invadi-lo. O parque foi
fechado há dois anos. Desde então, ninguém vem visitá-lo. O dono se aposentou,
mas tornou possível a entrada de qualquer pessoa. Segundo ele, a ideia de
alguém andando por aqui à noite, o faz feliz. Significa que ainda há crianças
crescendo por aqui.
- Ele parece um Senhor esperto. Eu o conheço? – Quis saber
o Sábio, grato pelo proprietário deixar a nova geração aproveitar um pouco dos
brinquedos que hoje já não fazem tanto sucesso quanto antes.
- Provavelmente. Ele
é um Senhor admirável. Quem sabe depois de nosso passeio, nós não podemos
visitá-lo?
- Você sabe a direção? – Perguntou o Sábio esperançoso.
- Mais tarde descobriremos. – Respondeu a Menina,
sorridente por deixá-lo mais iluminado. Os dois entraram pela entrada lateral
do parque e seguiram para o carrossel que, no momento, estava apagado. – Você
sabe ligá-lo?
- Não, mas nós dois sabemos que você sabe. – A Menina
sorriu, iluminando ainda mais o rosto do Sábio. Ela explicou devagar, o que o
Sábio deveria fazer. Ele, como excelente aprendiz, seguiu a risca tudo o que a
Menina dizia. Ao final, o carrossel girava devagar, como se fosse feito na
medida para que o Sábio pudesse subir. – Então – começou o Sábio ao se acomodar
numa carruagem real – O que fazemos aqui?
- Pense um pouco. Olhe ao redor... Onde estamos? – E de
repente o olhar do Sábio se iluminou. Quando seu mais jovem neto ainda era uma
criança, o Sábio trouxera o menininho aqui. Mais do que isso, o carrossel tinha
sido o primeiro brinquedo escolhido pela criança. Uma lágrima ameaçou
transbordar pelo olho do Sábio, hoje já Senhor de idade, que a conteve com o
lenço de pano há anos gasto e desbotado. A Menina sentou ao seu lado e deixou
que o Sábio revivesse aquele momento, sentisse aquele dia ensolarado com o
neto. Ela não se importou em esperar.
- Você sempre me surpreendendo, Doce Menina. – Falou o
Sábio, emocionado, deixando a Menina feliz.
- Faço o meu melhor para surpreendê-lo. – Disse a Menina,
fazendo do Sábio, um Sábio mais feliz. Ela o presenteou com mais alguns minutos
de silêncio antes de começar a falar. – Sabe o quanto de você está comigo hoje?
– Perguntou a Menina agora que o Sábio estava pronto.
- O quanto de mim? Talvez, menos do que eu gostaria. Sinto
muito, Doce Menina. – Desculpou-se o Sábio.
- Não sinta, porque você está certo. O quanto de você que
está comigo hoje depende das pessoas que o Senhor conheceu e se importou ao
longo dos últimos mais de 80 (?) anos de vida – Perguntou/afirmou a Menina parecendo
certa sobre a idade do Sábio, que de vez em quando, não parecia saber.
- Provavelmente. Uns anos a mais, outros a menos não farão
diferença... – O Sábio falou cada vez mais baixo, sabendo que não precisava
realmente responder a Menina. – Se estou aqui menos do que imagino que esteja,
o quanto estou exatamente e por que estou tão pouco?
- O quanto o Sábio está, não posso afirmar com certeza, mas
o porquê do tão pouco, eu posso tentar explicar. – O Sábio sorriu, sabendo que
a Menina amava falar. – Se eu o conheço hoje um pouco mais do que conhecia
ontem é porque você permitiu que eu conhecesse. Cada dia que eu o conheço mais
é resultado do que você, meu Amigo Sábio, deixou comigo. É assim com todos
aqueles que cruzaram seu caminho e se fizeram importantes. Nós deixamos um
pouco de quem somos com todos aqueles que amamos, assim como levamos um pouco
deles conosco...
- Mas, você disse que eu estava menos do que eu gostaria...
Se eu levo comigo um pouco dos outros, não deveria eu estar completo?
- Provavelmente. Quando disse que estava menos, quis dizer
que estava menos de si mesmo e não dos outros. Hoje, o Sábio é uma mistura de
todas aquelas pessoas que passaram pela sua vida.
- Prossiga. – Pediu o Sábio, entendendo o que a Menina
queria dizer. Antes de continuar, ela pensou como poderia chegar ao ponto.
- Seu mais jovem neto, o quanto você acha que ele deixou de
si para o Senhor? – O olhar do Sábio se iluminou. Agora, ele começava a entender
o que a Menina estava dizendo. – Pelo seu olhar, acredito que mais do que eu
poderia supor. – O Sábio assentiu. – Ele se foi, mas deixou um pouco de si
conosco. Ele deixou todas as lembranças, os sentimentos que faziam aqueles que
o amavam sentir. Ele deixou fotos, vídeos, cartas e até canções. Seu mais jovem
neto deixou muito por aqui. E, se o Sábio quiser, pode estar com ele, pelo
menos um pouco, quando quiser. Ele não estava aqui quando chegamos? Quando, o
que foi registrado pelos seus olhos o levou aquele dia ensolarado? – E, assim,
o Sábio sentiu seu mais jovem neto junto de si. Agora, ele sabia que podia
tê-lo, pelo menos um pouco, quando quisesse. E, tendo isso em seu coração, o
Sábio sorriu.
- Obrigada, Doce Menina! – Agradeceu o Sábio com lágrimas
nos olhos. A Menina sorriu.
- Mas, Amigo Sábio, não se esqueça de que está tudo bem se
tudo não estiver bem. A gente precisa de tempo para absorver algumas perdas,
algumas partidas, alguns desencontros... – Explicou a Menina. – Não há nada de
errado em não sorrir por alguns dias. Faz parte do processo de resiliência de
todo e cada um de nós. Chore se quiser chorar, sorria se desejar sorrir. O Amigo
não precisa se sentir sem graça por estar fragilizado. – Explicou a Menina,
fazendo o Sábio lembrar de quando os seus olhos encontraram o olhar de sua mais
Jovem Amiga.
Os dois permaneceram no parque por mais duas longas horas e
quando a noite já era mais madrugada do que noite, eles seguiram para casa do
dono do parque. Mas, a visita teria que ficar para outro dia, pois o
proprietário parecia estar dormindo. A Menina, então, se despediu do Sábio,
deixando que ele seguisse seu caminho para casa. Ele sorria e não se sentia só,
ao mesmo tempo em que deixava a dor fazer morada – por um tempo saudável - em
seu coração. Sua mente vagava pelas lembranças que tinha do seu mais jovem
neto, aquele que tinha deixado um pouco de si e levado um pouco consigo.
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