O conto a seguir não faz parte de "A Menina e o Sábio". Foi um texto que fiz para um concurso literário. Estou tentando me desafiar.
Recomeço era uma cidade
litorânea do nordeste brasileiro. Era tão pequenina que alguns mapas a deixavam
de fora dos inúmeros caminhos traçados nas páginas – em sua maioria, azuis.
Muitos visitantes eram surpreendidos pela sua existência, indo parar na cidade
sem querer. Bem, não tão sem querer assim, porque alguns acreditavam que essa
surpresa era um sinal enviado pela vida de que alguma coisa precisava chegar ao
fim para outra começar – o que, às vezes, não parece assim tão óbvio para quem
vive a vida sem fazer aquela parada obrigatória para observar a paisagem.
Outros, no entanto, não davam muita atenção àquela pequena – pequena mesmo –
descoberta. Muitas cidades também estavam fora do mapa e nem por isso eram mais
especiais. Miguel encaixava-se no primeiro grupo. No entanto, antes de chegar a
esse ponto da história, é preciso ir com calma.
– Boa tarde! – Disse
Miguel ao Dono do Quiosque. O homem assentiu em resposta. – O senhor poderia me
ajudar? – Novamente, o homem fez que sim com a cabeça. Miguel, então, explicou
que seu carro quebrara perto dali. Como não conseguira chamar o reboque com os
números que estavam disponíveis na internet, decidiu pedir ajuda. Depois de empurrar
o carro por mais de 20 metros, Miguel estava ensopado de suor, visivelmente
cansado. O dono do quiosque precisou de alguns minutos para achar o cartão que
procurava. Sem falar uma palavra mais uma vez, entregou o número para Miguel.
Depois de duas tentativas frustradas, ele finalmente conseguiu pedir ajuda.
Para sua surpresa, o reboque viria da cidade vizinha e, por isso, demoraria
mais de uma hora para chegar. Miguel olhou para o relógio de pulso e constatou
que não conseguiria chegar a tempo ao compromisso que o esperava. – Obrigado! –
Agradeceu. O dono do quiosque, então, ofereceu um copo de água para o
visitante. – Obrigado! Quanto custa? – Com um gesto de mão, ele recusou o
pagamento e, em seguida, se virou para continuar o que estava fazendo. Sem
opção, Miguel olhou ao redor, enxergando pela primeira vez o lugar em que
estava. A praia estava quase em silêncio. A única coisa que perturbava a calma
de um dia sem palavras era o sussurro do vento, que corria para chegar a algum
lugar desconhecido – desconhecido por Miguel, pelo menos. O telefonema em busca
de ajuda revelou que dia 27 de Abril era aniversário da cidade. Mais do que isso,
o lugar completava 100 anos. Um século de histórias escondidas por aqueles
mapas incompletos. Todos – palavras de seu Maneco, o homem da oficina –
estariam no centro de Recomeço para uma grande festa.
Depois de registrar a
paisagem em sua mente, Miguel foi atraído pelo píer – vários passos a esquerda
do quiosque. Ele desfez a distância que o separava do píer e subiu pela escada
lateral. Só quando chegou perto da borda, percebeu que mais alguém admirava a
solidão do mar naquele dia de festa.
– Desculpe-me! De longe, o lugar parecia vazio. – Aya olhou brevemente
para o desconhecido, mas não disse uma única palavra. Sua atenção voltou quase
imediatamente ao vai e vem das ondas. Por algum motivo, tanto Aya quanto o Dono
do Quiosque encontravam no mar a melhor forma de celebrar o aniversário da
cidade. – Você se importa se eu me sentar na outra ponta? – Assim como o Dono
do quiosque, Aya se expressou em silêncio. Miguel colocou a bolsa no chão e se
sentou ao lado – ainda que um pouco distante – de Aya. – Será que aqui ninguém
fala com estranhos? – A pergunta não era para Aya. Miguel falava consigo mesmo
e só percebeu que deixara as palavras escapulirem quando escutou a risada de
Aya. Desta vez, ela olhou para o desconhecido por tempo suficiente para
percebê-lo. Miguel retribuiu o olhar.
– É um
conselho bem sábio, se quer saber minha opinião. – Sem graça, Miguel apenas
assentiu. Ele não precisou explicar que o Dono do Quiosque não usara palavras
para se comunicar. Aya olhou na direção do quiosque, sendo seguida por Miguel, e
explicou: – Seu Zé só usa 37 palavras por
dia. – Apesar do “Seu”, é bom deixar registrado que José Alfredo acabara de
completar 40 anos.
– 37?
– Ela assentiu. Seu olhar novamente pousava sobre o mar – Por quê? – Aya deu de
ombros. Ao perceber que Miguel a encarava, ela comentou:
– É um
número primo! – Miguel franziu o cenho. Ele não sabia se aquilo era de fato uma
explicação ou se uma brincadeira. –
Ninguém sabe o motivo. – Revelou por fim, deixando Miguel curioso. O que faria
um homem usar apenas 37 palavras por dia? Seria uma promessa? Teria alguma
coisa a ver com os números primos? Muita se especulava a respeito desse
mistério. Algumas pessoas, inclusive, faziam apostas para saber quem conseguiria
convencer seu Zé a compartilhar o maior segredo de Recomeço. Se eles soubessem
o real motivo por trás desta escassez de palavras, ficariam decepcionados, e
seu Zé sabia disso. Infelizmente, este mistério é destinado a outras histórias.
A outros momentos. Por enquanto, o que importa é o encontro proporcionado pelo
destino – ou seria pelo acaso? A resposta depende para quem a pergunta é feita.
Depois de alguns longos minutos em silêncio, Miguel decidiu se apresentar.
– Miguel. – Aya não tirou os olhos do
mar. A imagem que o píer proporcionava a deixava fascinada. Quase todo dia, ela
assistia um pedaço da vida se desfazer naquele pôr do sol tão acolhedor e,
muitas vezes, a maioria delas, solitário.
– Aya. – Miguel achou o nome muito estranho,
como quase todo mundo da cidade, mas preferiu guardar para si esse comentário
sem importância. – Você faz exercício de calça jeans e camisa social?
– Exercício? – De imediato, Miguel
não entendeu o que uma coisa tinha a ver com a outra. – Ahhh! – A ficha caiu. –
Meu carro quebrou e eu tive que empurra-lo até aqui. – Explicou Miguel. Antes
que a conversa morresse no caminho, ele decidiu empurra-la quase da mesma forma
que fizera com o carro. – Também estou perdido. – Aya não respondeu. – Você
conhece... – O celular de Miguel tocou antes que ele pudesse concluir a
pergunta. Miguel tirou o telefone do bolso e, desanimado, atendeu a ligação. –
Eu estou a caminho... Meu carro quebrou... Estou em Recomeço... Não. É o nome
da cidade. – O telefonema durou pelo menos quinze minutos. Ao desligar, Miguel fechou
os olhos e soltou um longo suspiro. Fazia algum tempo que o emprego não o fazia
feliz.
– Problemas no trabalho? – Perguntou
Aya, olhando para Miguel mais uma vez. Ele assentiu de maneira desanimada. Ao
abrir os olhos, Miguel observou sem pressa a paisagem que tinha diante de si: o
céu refletido no mar, a tentativa do vento de levar as folhas pra longe, o vai
e vem ininterrupto das ondas, as aves em busca de alimento e os olhos
claríssimos, e cheios de curiosidade, de Aya. A angústia que carregava no peito
começava a se desmanchar. – Você é formado em quê? – Aya voltou a olhar para o
mar. Miguel fez o mesmo.
– Em engenharia, mas não exerço. Sou
concursado. E você? É formada em alguma coisa?
– Sou formada em medicina, mas, assim
como você, não exerço minha profissão. –
Apesar de estar com 27 anos, Aya parecia muito mais nova. Por isso, descobrir
um pouco mais sobre sua formação impressionava quem vinha de fora. – Estou cursando
matemática.
– Por quê? – O tom de voz de Miguel
carregava certa incredulidade.
– Porque eu gosto de matemática.
– Simples assim?
– Não foi tão simples assim. Demorou
anos para eu admitir que trabalhar em hospital não me fazia feliz. Só decidi
fazer vestibular de novo quando minha avó compartilhou comigo que
reconhecimentos vazios não nos preenchem. – Miguel não soube o que dizer. – Só
é bom perder tempo com coisas aparentemente inúteis.
– Estou impressionado. Nunca pensei
em largar meu emprego para correr atrás de sonhos antigos.
– Você tem vontade de fazer outra
coisa da vida? – Ele sorriu sem realmente sorrir.
– Acho que estou um pouco velho para
mudar o rumo da minha vida. – Aya riu.
– É mesmo? Você me parece bastante
novo.
– Tenho 35 anos.
– Eu conheço duas ou três histórias
que fariam você mudar de ideia rapidamente. – Garantiu Aya. – Se você não
acreditar em mim, pode perguntar diretamente aos três. Daqui a pouco, eles
aparecem por aqui para jogar conversa fora. – Como Miguel permaneceu em
silêncio, Aya escolheu a primeira história que desejava contar. – O primeiro personagem
se chama Afonso. Ele passou em um concurso quando estava com vinte e poucos
anos de idade. Não demorou muito para ser chamado. Permaneceu no cargo por mais
de dez anos até decidir cursar medicina. Depois de juntar dinheiro suficiente
para bancar as despesas durante os seis anos de graduação, ele pediu demissão e
começou a preparação para o vestibular. Foi aprovado de primeira e hoje – vinte
e três anos depois – trabalha no hospital da cidade. – A história de Miguel se
assemelhava a de Afonso. Ele também passou em um concurso ainda muito novo e
fazia quase quinze anos que exercia o mesmo cargo. – O segundo personagem se
chama Xavier. Ele já tinha mestrado e doutorado em fisiologia e era professor
concursado em uma universidade pública quando resolveu “voltar” ao ensino médio
para se dedicar a medicina. Fez vestibular aos 41 anos e tornou-se aluno de
seus alunos. – A idade de Xavier surpreendeu Miguel. – O último personagem se
chama Olímpio. Assim como os outros dois, ele também trocou o cargo público
pela vida de médico. Na época em que decidiu mudar o rumo de sua história, ele já
estava a um passo dos 40 anos e trabalhava na prefeitura da cidade. – Aya
esperou Miguel absorver as três narrativas antes de compartilhar um detalhe
interessante sobre os moradores da cidade. – Seu Zé, Afonso, Xavier e Olímpio são
os quatro mosqueteiros de Recomeço. Eles se conheceram na universidade. – Por essa,
Miguel não esperava. – Sim, ele também é médico. Ou melhor, tem o diploma. Assim
como eu, ele exerceu a profissão por tempo curto demais para ser considerado
médico com M maiúsculo. – Miguel não sabia se a história acabara. Por isso,
permaneceu em silêncio. – Sabe o que é mais interessante? Seu Zé foi o laureado
da turma. Quando ele decidiu largar o jaleco, pegou todo mundo de surpresa. Como
se soubesse o que Miguel perguntaria a seguir, Aya respondeu: – Não, ele nem
sempre foi um homem de 37 palavras. – Esse detalhe deixou Miguel ainda mais
curioso para saber o motivo que levara seu Zé a falar tão pouco ao longo do
dia. – As pessoas ficaram ainda mais espantadas quando descobriram o talento que
Seu Zé tem para as palavras. – Recomeço era realmente uma cidadezinha
surpreendente. Isso Miguel precisava admitir. – Toda vez que um livro novo é
lançado, a cidade faz uma festa para celebrar o primeiro e, até agora, o único
escritor de Recomeço. – Os próximos minutos foram preenchidos pelo ruído do
vento, enquanto Miguel registrava cada palavra confidenciada por Aya em sua
memória. As histórias dos quatro moradores de Recomeço impressionaram Miguel.
Recomeçar já não parecia uma ideia tão assustadora. Será que ele teria a mesma
coragem e a mesma força que aquele quarteto sonhador? Ainda era cedo demais para
saber. Mais alguns minutos se passaram antes de Miguel interromper o silêncio
das palavras:
– Nada é por acaso. – Concluiu Miguel
mais para si mesmo. Ele sempre desconfiara das coincidências da vida e agora
mais do que nunca sentia que as coisas aconteciam na hora certa. Aya, por outro
lado, acreditava na aleatoriedade da vida.
– Tudo é por acaso. – Afirmou Aya.
– Você não acredita em destino? –
Miguel parecia surpreso. – Como você explica todos os acontecimentos que me
trouxeram até aqui? Eu primeiro me perdi e depois meu carro quebrou a poucos
metros daqui.
– É bem fácil explicar.
– É mesmo? Acho difícil existir
explicação convincente para o dia de hoje. – Aya sorriu.
– Olhe que tem...
– Conte-me. Estou curioso. –
Incentivou Miguel.
– Tem certeza? – Perguntou Aya.
Miguel assentiu. – Por onde devo começar? – Para deixa-lo mais curioso, Aya fez
alguns segundos de suspense. – Tem certeza, né? – Mais suspense. Miguel riu. –
Bem... Com relação a Recomeço, você estava tão distraído, pensando nos
problemas que precisa resolver no trabalho, que pegou a estrada errada. Muita
gente comete o mesmo erro, principalmente porque a sinalização é ruim. A placa
que nos situa no mapa vive desaparecendo. Até hoje, ninguém sabe o que faz
alguém roubar as placas da região. Ou seja, acontece bastante. – O primeiro
ponto estava explicado. – Quanto ao carro, é muito provável que ele precise de
uma revisão. Há quanto tempo você não vai a concessionária fazer um check-up?
– Há bastante tempo. – Miguel
precisou admitir que a explicação dada por Aya fazia todo sentido. No entanto,
decidiu que acreditaria na intervenção do destino.
– Se preferir uma explicação mais
científica, eu posso dizer o seguinte: existe uma lei, a “lei dos números
realmente grandes” de Borel, que afirma que se existe a possibilidade, mesmo
que pequeniníssima, de determinada coisa acontecer, tal coisa deverá acontecer
em algum momento. – Miguel sorriu ao perceber a felicidade que Aya transpirava
ao falar sobre matemática. Ao escutá-la, dava para se ter uma ideia de como
alguém deveria se sentir ao encontrar um lugar no mundo para chamar de seu. Como
Aya parecia ter certeza sobre o acaso, Miguel preferiu deixar a discussão de
lado. Nada que ela dissesse o faria mudar de ideia, assim como nada que ele
dissesse a faria mudar de ideia. Por isso, ao voltar a falar, Miguel mudou o
rumo da conversa:
– Por que você não está na festa de
cem anos da cidade?
– Cem não é um número primo. – Miguel
riu.
– Zé!!!!!!!!!!!! – Três pessoas
gritaram em uníssono. Aya e Miguel olharam para trás.
– Eles chegaram! – Afonso, Xavier e
Olímpio realmente apareceram por ali como Aya previra. – Por que você não
confere se minhas histórias são verdadeiras? – Incentivou Aya.
– Eu sei que são. – Respondeu Miguel,
fazendo-a sorrir. Os dois se olharam nos olhos e permaneceram em silêncio até o
celular de Miguel interromper o momento. Era seu Maneco. A ajuda demoraria mais
um pouco para chegar. Parte do caminho para Recomeço estava interditado. O
motivo? Seu Maneco não sabia.
– Como a ajuda está a caminho a
passos lentos, por que você não aproveita para conversar com os mosqueteiros da
cidade? – Eles mais uma vez observavam o mar. – Tenho certeza que meu pai e os
demais não se importarão em compartilhar um pouco de experiência com um
desconhecido. Para Miguel, aquele era mais um sinal do destino, que decidiu
oferecer mais tempo para que ele conversasse com os mosqueteiros da cidade.
Para Aya, mais um evento randomizado.
– Um deles é seu pai? – Aya assentiu.
– Como eu saberia dos pormenores se
não fossem histórias de pessoas próximas?
– Dizem que em cidades pequenas todo
mundo se conhece muito bem – Aya sorriu.
– Aya! – Chamou Olímpio, o mais alto
do grupo. Aya olhou para trás mais uma vez. – Vem para cá! Alfredo fez suco de
abacaxi com hortelã.
– Vamos? – Convidou Aya. – Eu garanto
que o suco de seu Zé é o melhor do país... – Ela parou ao perceber certa
inconsistência. – Como você não me viu do quiosque se meu pai pôde me ver? –
Miguel não entendeu de imediato.
– Acho que estava tão distraído
quando cheguei aqui que não a vi conscientemente.
– Faz sentido e confirma o que eu
falei sobre o acaso. – Miguel sorriu ao ouvi-la insistir na aleatoriedade da
vida, mas achou melhor deixar esse debate pra outro momento, se é que ele existiria.
Aya se levantou e pegou o livro que escondia do outro lado. O título chamou a
atenção de Miguel.
– “O mistério dos números”? – Leu em
voz alta.
– Meu livro preferido. Já li sete
vezes.
– Por que sete é um número primo? –
Provocou Miguel. Aya achou graça.
– Eu teria parado em dois se fosse
por isso. – Os dois conversavam como se fossem velhos amigos, talvez até
fossem, como Miguel secretamente acreditava. Amigos de outras vidas, amigos que
sempre se procuravam em toda nova oportunidade que recebiam. Aya, por outro
lado, achava que eles apenas compartilhavam dúvidas parecidas. Não era um
reencontro, uma ligação especial que os unia.
Um
ano depois, Miguel voltou a Recomeço. Ele precisava compartilhar a novidade com
Aya. Contar pra ela sobre a aprovação no vestibular de medicina. O píer foi o
primeiro e único lugar em que pensara ao longo do caminho até ali. Ao passar
correndo pelo quiosque de seu Zé, Miguel soltou um "oi" apressado para
o vento. Para sua surpresa, o homem pronunciou a palavra "olá" em
resposta, fazendo-o sorrir. Miguel subiu as escadas às pressas, torcendo desesperadamente
para encontra-la ali, onde a conhecera ano passado. Quando pôs os pés no píer
propriamente dito, ele respirou fundo algumas vezes para recuperar o fôlego. Fazer
exercício não estava em sua lista de prioridades. Aya, que antes observava o
mar, olhou para trás e encontrou os olhos escuros de Miguel. Ele sorriu. Ela
também.
–
Você? – Surpreende-se Aya. Ela não
acreditava que voltaria a vê-lo. – O que o
trouxe desta vez? O acaso ou o destino?
– Você
ainda não acredita em destino?
– E
você? Ainda acredita nele?
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