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Viagem no tempo: rebobinando


Em quase todos os “31 de Maio” que vieram depois que Lívia se foi, o Sábio sonhava com algum momento da história dos dois. Infelizmente, as imagens sempre apareciam desbotadas, ou melhor, um tanto embaçadas. Certa vez, o Sábio sonhou com um dos dias mais difíceis de sua vida, algumas semanas depois que Lívia foi embora.
Francisco estava deitado na cama, de olhos fechados, virado para o lado da parede. Ao abri-los, uma de suas memórias com Lívia se refez. Ela fazia o braço do Menino de travesseiro. Os dois conversavam de madrugada sobre o futuro, um olhando no olho do outro.
- Um sonho? - Francisco assentiu. – Qualquer um?
- Qualquer um! – Lívia sorriu.
- Escrever uma canção.
- Escrever uma canção? Você já fez isso.
- Não qualquer canção, A Canção. Com “C” maiúsculo.
- E tem diferença?
- Não sei. Ainda não escrevi. – Respondeu Lívia. – Sua vez. – No presente, uma lágrima teimosa escapuliu sem permissão.
Ao tentar tocá-la, a imagem se desfez, lembrando o Menino que a Menina já não estava mais ali, ao seu lado na cama, em seu quarto, naquela vida. Na tentativa de fugir daquela lembrança, o Menino deu as costas para a parede. A vida, no entanto, parecia querer fazê-lo sofrer. Desta vez, a imagem formada levava o Menino à madrugada de 17 de Junho de 2011, ano em que completou 18 anos. Um pouco depois da meia-noite, Lívia apareceu com um bolo de laranja, cantando baixinho para não acordar o resto da casa.
- Feliz aniversário, meu Amor! – Francisco se sentou na cama e pagou as velas. –Tenho um presente pra você. Feche os olhos! – O Menino sorriu e fechou os olhos, desconfiado daquele presente. Lívia colocou o bolo na mesinha de cabeceira e deu um beijo no Namorado. Depois outro e mais outro, até perder as contas. No presente, Francisco apertou os olhos, deixando as lágrimas caírem e, mais uma vez, a imagem se desfez. A cena seguinte começava assim:
- Deixe de ser medroso! Eu não vou machucá-lo. – Garantiu Lívia. Ela esperava na porta do banheiro.
- Você nunca fez uma barba. – Constatou Francisco.
- Existe uma primeira vez para tudo nessa vida.
- E uma última também...
- Engraçadinho! – Francisco se sentou e esperou Lívia começar. – Pronto?
- Não!
- 1, 2, 3 e já... – Lívia espalhou o creme de barbear e, com cuidado e muito medo, tirou a barba do Namorado pouco a pouco. Talvez fosse sorte de principiante, mas, no final, Francisco precisou reconhecer que o “trabalho” de Lívia tinha ficado muito bem feito. No presente, Francisco desistiu de lutar contra as lágrimas. Como no primeiro dia sem Lívia, o Menino foi para baixo do chuveiro e ligou a torneira. Depois de um tempo debaixo d’água, Francisco voltou para o quarto e sentou na beira da cama, todo ensopado. Ele chorava copiosamente, sem tentar abafar o som de suas lágrimas. Era cansativo demais fazer silêncio naquele momento. Do outro lado da porta, o Irmão Mais Velho do Menino decidia o que deveria fazer. Depois de um longo minuto de contemplação, Joaquim entrou no quarto sem fazer barulho e sentou ao lado de Francisco. Durante muito tempo, nenhuma palavra foi dita. Naquele instante, o silêncio era a melhor companhia.
- Ela está em todo lugar – Revelou o Menino para o irmão mais velho, completamente descontrolado.

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