Todo mundo que convive comigo desde o ensino médio sabe que eu tenho umas manias meio esquisitas (esquisitas pros outros, é claro), difíceis de explicar e (quase) impossíveis de compreender. Eu, inclusive, depois de tanto tempo - mais de dez anos -, deixei de explicar o porquê de fazer aqueles "rituais" sem sentido. Era extremamente cansativo repetir a mesma história duas, três, quatro ou várias vezes. No entanto, ao começar a escrever os textos para "A Menina e o Sábio", quatro anos atrás, me passou pela cabeça que eu podia compartilhar minha experiência com os outros como forma de ajuda-los - estender a mão não só aos bravos guerreiros que lutam diariamente contra o T.O.C., mas também aos familiares, amigos, colegas de trabalho, namorados, etc. que convivem com alguém cheio de manias como eu.
Espero que a Menina consiga transmitir - traduzir - toda a Gratidão que eu sinto por TODOS aqueles que fizeram/fazem parte da minha história.
A TODOS vocês - aos que se tornaram personagens e aqueles que estão nas entrelinhas - o meu muitíssimo obrigada! Porque como diria a Menina em um conto que ainda está por vir: Gratidão é primavera, um jardim colorido onde florescem bons sentimentos!
P.S.: a história abaixo é baseada em fatos reais. (Sempre quis dizer isso, admito!).
O Sábio estava cansado. Decidiu então lavar o
rosto para espantar a exaustão. Ele estava preocupado com sua neta. Pior que
isso, ele não sabia o que fazer para ajudá-la. Carregava consigo a esperança de
que durante a madrugada alguma ideia visitaria sua mente, deixando um recado de
como agir. Mas ele sabia que isso não aconteceria. Não por enquanto. Ao voltar
para a sala, o Sábio encontrou a Menina sentada no sofá. Ele sorriu ao vê-la.
- Doce Menina, que bons ventos a trazem? – Perguntou o
Sábio tentando não parecer tão preocupado. Ele encheu um copo com água e sentou
ao lado dela.
- Tenho quase certeza que não há vento lá fora. – O Sábio
olhou pela janela e percebeu que ela tinha razão. Estava realmente estranho lá
fora, como se a vida tivesse ido embora. As folhas das árvores não se mexiam e
as que caiam, caiam porque chegara a hora.
- É, acho que você tem razão. Se não foi o vento, quem a
trouxe? – A Menina olhou para o Sábio e em tom de brincadeira disse:
- Estava com saudade de sentar em um sofá. – Disse a Menina
colocando as pernas na mesinha de centro e batendo no sofá com as palmas da
mão, enquanto analisava o estofado desgastado e sem cor que preenchia quase
toda a sala do Sábio.
- Você devia estar mesmo com saudade de sentar em um - para
vir até aqui sentar em um sofá velho e fedorento que nem este. – Falou o Sábio,
imitando a Menina. Suas mãos, ao baterem no tecido, levantaram poeira. A Menina
riu.
- Tudo bem. Admito. Não foi pelo seu sofá desconfortável. –
Disse ela tirando os pés da mesinha. Vim porque achei que poderia ajudá-lo. – O
Sábio não estava surpreso. Sabia que era pela sua neta que a Menina estava ali,
ao seu lado. Elas deviam ter a mesma idade, perto dos 17 anos.
- Você vai visitá-la? - Perguntou o Sábio tentando
adivinhar. A ideia pareceu ainda mais patética quando dita em voz alta, mas o
Sábio sabia que a Menina não se importava. Na verdade, ela se divertia. A
Menina parecia tão real que o Sábio esperava encontrá-la no supermercado
comprando algum refrigerante ou um pacote de biscoito, como uma adolescente
normal. Infelizmente, ele sabia que isso jamais aconteceria, mas continuava
pensando a respeito. Ele mesmo se divertia com as suas ideias absurdas.
Preenchia o vazio de algumas caminhadas.
- Quem sabe em outras vidas. – Respondeu ela, acreditando
que eles voltariam a se encontrar em um futuro talvez distante.
- Quem sabe... – Disse sem muita esperança. Depois olhou
nos olhos da Menina e esperou ela continuar.
– Vim contar uma história. – De imediato o Sábio pensou que
a Menina estava brincando, mas ele a olhava nos olhos. Ela falava sério. Ele
não sabia como isso poderia ajudá-lo, mas a Menina sempre foi boa em fazê-lo
enxergar as coisas mais claramente.
- Sobre o quê?
- Sobre uma garota que não sabia a força que tinha. – As
palavras dela fizeram o Sábio sorrir. Ele sabia que seria uma boa história.
- Acho que já estou gostando dessa história. – O Sábio
colocou os óculos e procurou um bloquinho de notas que guardava dentro do baú
que estava em cima da mesinha de cabeceira. Dentro dele também tinha uma
caneta. Ele riscou a página para ver se ela funcionava e como já estava escurecendo,
resolveu ligar o abajur. Como logo seria noite, o Sábio achou melhor ligar as
luzes da sala e voltou a sentar no sofá. – Pronto. Agora sim você pode começar.
- Para que o bloquinho? - Perguntou a Menina, curiosa.
- Ainda não sei. Nunca sei o que esperar de nossos
encontros. – Ele refletiu um pouco e corrigiu: - Quer dizer, exceto que você
ama falar. Isso eu sempre espero de nossas conversas. – A Menina riu.
- Amo mesmo. Falar é bom. Quase tão bom quanto escutar.
- Estou surpreso. Você gosta mais de escutar? – A Menina
pareceu ofendida, mas logo abriu um sorriso. Ela estava brincando.
- É sempre bom escutar. Aprende-se muito escutando os
outros.
- É verdade. Você tem toda razão. Apesar de achar
secretamente que falar é mais a sua “praia” – A Menina agora ria mais alto.
- Conte-me, Doce Menina, como a garota descobriu a força
que tinha?
- Não seja apressado, Amigo Sábio. Toda história tem um
começo e é por ele que pretendo começar. – O Sábio assentiu, sentindo-se mais
animado. Ele acreditava na Menina. Acreditava que ela poderia e iria ajudá-lo.
– E o começo se passa quase setenta anos antes, entre Maio e Junho de 2008.
- Tempos da minha juventude... – Falou o Sábio saudoso,
lembrando-se de Lívia.
- Não seja velho! Você continua jovem. – O Sábio achou graça.
A careta dele dizia “não precisa ser tão gentil” – Jovem em espírito, pelo
menos.
- Tudo bem. Tempos do início da minha eterna juventude. –
Corrigiu ele.
- Bem melhor. Estou satisfeita. – Os dois sorriram e a
Menina percebeu que perdera o fio da meada. – Onde paramos?
- No começo, entre Maio e Junho de 2008...
- Bem lembrado. – Disse alto. – Agora podemos de fato
começar. Preparado? – O Sábio assentiu. - Entre Maio e Junho de 2008, a garota
estudava para uma prova sobre o período mais cheio de paradoxo da literatura
brasileira, o barroco. – A Menina sorriu.
- O que foi? – Perguntou o Sábio sem entender o sorriso
dela.
- Amo como a palavra paradoxo soa... Você não? – O Sábio
riu, pensando que em momentos assim, a Menina parecia realmente uma Menina e
não uma jovenzinha que sabia muito para sua pouca idade.
- Acho que nunca parei para pensar a respeito. – Respondeu
o Sábio achando graça.
- Pois deveria. É filosofia pura. – Brincou a Menina. O
Sábio riu alto.
- Pensarei. – Respondeu ele recuperando o fôlego. A Menina
sorriu. – Ela estudava o barroco... – Puxou o Sábio.
- Ela estudava pelo caderno e pelo livro que a professora
indicara...
- Difícil acreditar. Quase ninguém estuda pelos livros. –
Interrompeu o Sábio. Então, seus olhos percorreram a estante da sala,
procurando por um livro de literatura da adolescência. Quando percebeu que
guardá-lo por 70 anos não parecia possível,
desistiu. A Menina sorriu.
- Mas ela estudava e, na véspera dessa prova, não só pelos
livros, mas também pelo blog da professora. – O Sábio ergueu as sobrancelhas.
Ele não fazia ideia do rumo que a história seguiria. - Ela imprimiu os textos
que queria e depois de colocar as páginas em ordem, foi estudar no quarto de
seus pais. – A Menina parou e, durante alguns minutos, permaneceu em silêncio
sem enxergar nada. Ela estava distante. O Sábio preferiu então esperar, e
quando a Menina recomeçou, ele entendeu por que ela precisara da companhia do
silêncio. – Quando ela começou a estudá-los, mal sabia que aquele seria seu
último bom momento, o último bom momento antes de uma reviravolta dolorosa.
- Espere! Não entendi... O que aconteceu?
- As palavras começaram a roubar dela os bons momentos. –
Disse a Menina sem entrar em detalhes.
- O que tinha escrito no texto? – Perguntou o Sábio tentando
entender.
- O gatilho que o T.O.C. precisava para iniciar as
desventuras em série da garota. – De imediato, o Sábio não sabia do que ela
estava falando, mas em questão de segundos os seus anos como médico fizeram-no
lembrar. A Menina falava de um transtorno de ansiedade, o Transtorno Obsessivo
Compulsivo, ou como era mais conhecido, o T.O.C. O Sábio se entristeceu.
Conhecia o T.O.C. e sabia o quanto ele poderia ser traiçoeiro.
- A primeira alegria que o T.O.C. tirou foram os livros. A
garota acreditava que se lesse qualquer um deles até o final, algo ruim
aconteceria. – Um momento de silêncio preencheu a sala. O Sábio lembrava-se de
alguém...
- Conheci alguém que amava os livros. Ela dizia que ler era
como viver em dois mundos, o real e o imaginário. – A Menina sabia de quem o
Amigo falava e se entristeceu ao escutá-lo. – Ela dizia que, apesar de a
leitura levá-la para longe sem sair do lugar, um pedaço de si permanecia onde
estava no mundo real. – Ele sorriu ao lembrar-se de Lívia. Era uma saudade boa.
– Segundo Lívia, era perigoso demais embarcar em uma viagem pelo mundo
fantástico sem tomar as devidas precauções. – Explicou o Sábio. E a Menina
entendia o porquê de Lívia ter tanto cuidado. Mas, isso são porquês de outras
histórias. - Desculpe-me, Doce Menina... Onde estávamos?
- Nas alegrias da garota. Primeiro, os livros foram
“esquecidos” na prateleira. Em seguida, um dos vícios dela, o refrigerante,
deixou de fazer parte da lista de compras da mãe da garota.
- Algo ruim também aconteceria? – a Menina assentiu.
- Então, os dias começaram a piorar. Ela passou a não
entrar em seu quarto, a não tocar nas paredes e a não pisar no chão. A garota
deixou de entrar no carro dos pais e passou a ir a pé para o colégio. E cada
pedacinho dela que o TOC ia roubando, fortalecia a força que ele tinha sobre
ela. – Em um determinado momento, a garota não estudava mais História, porque
em nenhum dos livros ela conseguia pegar.
- Em que ano ela estava?
- Ano de vestibular. A solução, então, foi estudar com o
irmão mais novo. – Os olhos da Menina transpareciam a dor que sentia ao
lembrar-se daqueles dias tristes. Para continuar, ela respirou fundo,
“preenchendo” os pulmões com ar. Não literalmente, obviamente. - Os dois
sentavam-se a mesa da cozinha e ele lia em voz alta o conteúdo para ela. – O
Sábio queria muito entender melhor aquela história, mas sabia que precisava
esperar a Menina dar espaço. - Mas História não era o único problema da garota.
Estudar tornou-se quase impossível, porque ela acreditava que se pensasse em
alguma coisa, alguma palavra ruim, enquanto estudava, precisaria recomeçar o
parágrafo. Chegar ao fim de uma página era uma vitória. – Explicou a Menina.
- Se ela não recomeçasse o que aconteceria?
- Ela estaria fazendo mal a alguém que amava. E por mais
que os outros tentassem, argumentassem que aquela ideia não fazia o menor
sentido, que se fosse assim, outras pessoas poderiam ferir alguém querido, para
ela não era questionável. Era verdade e pronto. - Como médico, o Sábio conhecia
histórias parecidas e sabia o quanto a ansiedade em excesso fazia mal, o quanto
ela era perigosa. Por isso, escutar as palavras da Menina enchiam seus olhos de
lágrimas.
- Doce Menina, será que podemos parar um pouco? Preciso
lavar o rosto. – A Menina assentiu. O Sábio se levantou e foi ao banheiro. Lá,
ele abriu a torneira, encheu as mãos de água e molhou o rosto. Depois, desligou
a torneira e apoiou-se nas bordas da pia encarando o espelho. O Sábio
perguntava-se o quanto a mente, quando não saudável, pode tornar a vida de alguém
tão difícil. Ele respirou fundo mais uma vez e sentou-se ao lado da Amiga. –
Pronto, estou preparado para o que vier. – A Menina sorriu.
- Bom mesmo. Ainda há muita história para ser contada. Mas,
antes, preciso situa-lo. O começo se passa em 2008, como eu já disse, mas a
desventura em si dura mais de 10 anos. Dez anos de altos e baixos. – O Sábio
sorriu tristemente, pensando em todas as lágrimas que a garota tinha derramado
ao longo daqueles 10 cruéis anos. – Em que parte paramos? – Perguntou a Menina,
tentando, sem sucesso, lembrar-se do fio da meada.
- Na parte em que a garota precisava recomeçar a frase toda
vez que pensava em algo ruim...
- Isso mesmo! – A Menina pensou um pouco no que viria a
seguir antes de continuar. Só demorou um pouco. - Ela recomeçava tantas vezes
os parágrafos que estudar tornou-se angustiante. Não eram poucas às vezes em que
desistir seria mais fácil. Mas, ela continuou. Estudava o que conseguia e
torcia para se sair bem nas provas, o que geralmente não acontecia.
- Não houve progresso nas leituras? Nenhuma melhora? –
Interrompeu o Sábio.
- Durante um tempo, tentando não pensar em todo o
repertório de palavras proibidas enquanto lia, a garota escutava música no
volume mais alto que o celular permitia. Às vezes ajudava, às vezes não...
- Não parece uma boa ideia... – Comentou o Sábio.
- E não foi. Acho que de tanto fazer isso, ela
provavelmente perdeu um pouco da audição. – O Sábio pareceu um pouco assustado
com as repercussões daqueles dias cheio de manias. – Eu não sei se ela chegou a
fazer teste para saber se tinha realmente perdido, mas se você sentasse perto
dela, perceberia que, em muitas ocasiões, ela falava quase gritando. Nessa
mesma época, ela lavava tanto as mãos, tentando “proteger” as pessoas que amava
de destinos catastróficos, que chegava ao ponto de feri-las. – O Sábio olhou
para suas mãos e imaginou se fossem suas as mãos feridas, como ficariam. Não
parecia ser algo agradável. Percebendo que o Sábio divaga, a Menina esperou ele
voltar aquele momento, ali, na sala, ao lado dela. Não demorou muito. - Em
algumas ocasiões, ela lavava as mãos mais de cinco vezes para cinco minutos
depois voltar ao banheiro e lavá-las mais incontáveis vezes, porque, apesar de
lavar garantir a “segurança” dos outros que ela tanto queira proteger, o alívio
era passageiro. Não duravam nem poucos minutos... – Trim, trim, trim, trim... O celular do Sábio tocou.
- Um momento, Doce Menina! – Ela esperou. – Alô? Sim, é ele...
Oi, doutor! Sei. Certo. Às 08 horas? Certo. Está marcado. Para você também,
até! – O doutor do outro lado da linha desligou. – Como ele conseguiu meu
número? – Perguntou o Sábio mais para si mesmo do que para a Menina.
- Você é um médico conhecido. Deve ser fácil conseguir seu
número. – Brincou a Menina.
- Médico aposentado e esquecido – A Menina riu.
- Quanto drama. – Agora era o Sábio que ria. – Podemos
continuar? – O Sábio assentiu. – O próximo pensamento automático da história
vai desencadear quase todas as manias seguintes. Para a garota, todos os meios
de comunicação que divulgavam notícias ruins tornaram-se perigosos. Ela
acreditava que se passasse pela frente de jornais, revistas, computador, televisão
ou rádio seria contaminada por “fluidos negativos”.
- Fluidos negativos? De onde ela tirou isso?
- Ninguém sabe. – Respondeu a Menina. - Esses fluidos
fariam da garota uma pessoa ruim.
- Capaz de fazer mal as pessoas que amava? – Perguntou o
Sábio de maneira retórica, entendendo o que Menina tentava explicar.
- Exatamente. Desse ponto em diante, ela não sentava na
sala de casa, não gostava de ir para a casa dos amigos ou de visitar a família,
porque todos eles tinham televisão, jornais e revistas espalhados pela casa.
Foi por conta dessa mania que os pais deixaram de comprar jornal e revista. E
sempre que ela estava por perto, eles evitavam assistir as notícias na
televisão ou no rádio. Foi nessa época que ela também parou de tocar nas
pessoas. Como os amigos e a família vinham de casa, ela dizia que não podia
abraça-los, pois não sabia no que eles tinham tocado ou se tinham ou não
passado pela frente de televisão e computador. Quando voltava da escola a pé,
ela sempre precisa driblar uma, duas, três bancas de revista.
- E como ela driblava as bancas de revistas ou todas as
lojas que vendiam jornal? Sem falar nos pontos no meio da rua que vendem
jornal...
- Ela procurava caminhos alternativos, o que deixava a
volta para casa mais demorada. De vez em quando, aparecia alguém vendendo
jornal no itinerário que ela usava. A solução, então, era procurar outra rota.
Quando não achava, ela passava abaixada, tentando ficar abaixo de onde o jornal
estava. As pessoas olhavam, estranhavam, mas ela fingia que não via e seguia em
direção a casa. Em algum momento, não eram apenas as notícias reais que ela
temia, os filmes e séries também deixaram de fazer parte da sua rotina e
qualquer locadora que aparecia no caminho, ela evitava. Para piorar, em
determinado ponto, quando as pessoas falavam palavras que ela considerava
“perigosas”, ela sentia a necessidade de lavar o rosto, como se aquilo fosse
salvá-la de se tornar uma pessoa ruim.
- Que tipos de palavra? – Perguntou o Sábio, curioso e
preocupado. Era angustiante imaginar as dificuldades que a mente da garota
inventava para atrapalhar atividades simples e até pouco tempo divertidas, como
a leitura.
- Tudo que envolvesse violência. E não eram apenas as
palavras “violentas” que ela evitava, mas sílabas de palavras que não tinham
nada a ver com isso...
- Como assim sílabas de palavras? – Perguntou o Sábio, não
associando o que a Menina dizia.
- MATEmática, por exemplo. Não tem nada a ver com
violência, mas se você observar, as duas primeiras sílabas juntas significam o
que ela considerava perigoso demais. – Explicou a Menina.
- Mais uma disciplina que ela não conseguiria estudar.
- Exatamente. E para ela era ainda mais doloroso não
conseguir estudar matemática, porque durante muito tempo, se você perguntasse,
era o que ela faria da vida depois de se formar no ensino médio.
- Além de história e
matemática, que outras matérias, a garota não conseguia mais estudar direito?
- Português, literatura e geografia – a parte que fala dos
conflitos entre países, pelo menos. Apesar disso, ela continuou tentando
estudar. Como não entrava mais em seu quarto, o jeito era ler na cozinha.
Infelizmente, o resultado não voltava. As notas estavam todas abaixo da média
e, em certo ponto, nem o pai dela acreditava mais que ela passaria de ano. – O
Sábio pensou em como deve ter sido difícil para a família da garota. – Mas toda
vez que ela perguntava se ele acreditava que ela conseguiria, ele dizia que
sim, da maneira mais convincente que podia. E, em nenhum momento, ela duvidava
da sinceridade do pai. Continuava tentando, apesar de continuar falhando. – O
Sábio, então, imaginou a garota perguntando ao pai se ele acreditava que ainda
era possível, o coração implorando por um fio de esperança solto que pudesse agarrar
e segurar firmemente com as mãos. O coração implorando para acreditar que sim, que
era possível. A Menina novamente percebeu que o Sábio estava longe. Por isso,
deixou o Grande Amigo digerir tudo o que contara até agora. Quando sentiu que
ele estava pronto, ela voltou a falar. – A pior parte da história eram os
momentos de completa desesperança. Uma vez, ela entrou no banheiro e fechou a
porta, soluçando de tanto chorar. E, ali, sozinha, tentando não fazer barulho
para os pais e o irmão não se preocuparem, ela pediu ao Céu, em sinal de
desespero, que a levasse daquela vida, porque ela não aguentava mais toda
aquela dor, todos aqueles pensamentos cruéis. Ela não suportava mais repetir os
mesmos comportamentos infinitas vezes, ou deixar de fazer o que gostava por
conta das “consequências” – Uma lágrima escapou dos olhos do Sábio, fazendo eco
às lágrimas da garota da história, mais ou menos 70 anos antes. A Menina olhou preocupada para o Amigo, que na
mesma hora fez questão de tranquilizá-la:
- Desculpe-me, Doce Menina! Não queria preocupá-la. É que
imagino as dificuldades da minha neta. A longa jornada que ela enfrentará – O
Sábio enxugou as lágrimas seguintes, que insistiam em transbordar, e pediu para
que ela continuasse. Antes de voltar ao ponto em que tinha parado, a Menina
falou para o Amigo:
– Eu prometo ao Amigo que sempre existirão dias para
sorrir, cantar e dançar na chuva. Porque, por mais doloroso que seja o T.O.C.
ou qualquer outro transtorno de ansiedade, sempre existirá o sorriso da
superação, a comemoração por cada dificuldade a menos. – A Menina parou,
tentando lembrar-se do que o Psiquiatra tinha dito ao pai da garota. Ela não
sabia ao certo quais foram as palavras usadas pelo homem, mas elas diziam mais
ou menos o seguinte: - O tratamento é como uma montanha de areia, tem o esforço
da subida para chegar ao ponto mais alto, mas têm os dias de escorregar e
voltar dois passos e, infelizmente, precisar subir de novo. Mas o mais
importante é que os dias de subir, de dar dois passos, são sempre motivo para
celebrar. – O Sábio sorriu.
- Espere um segundo, o psiquiatra? Você ainda não tinha
falado nele... – Comentou, pensando se perdera alguma informação da história.
- Nós vamos chegar lá. – Prometeu a Menina. – Isso foi só
um aperitivo do que está por vir. – O Sábio sorriu.
- Você acha que com minha neta será assim? Será que o sol
vai sorrir para ela, mesmo que só de vez em quando? – Perguntou o Sábio, retomando
a promessa da Menina de que existiriam dias para sorrir de orelha a orelha.
- Eu acho que muito mais do que de vez em quando. – Disse a
Menina, sorrindo. – Você vai perceber isso. Preste atenção à história... E
tenha calma. – Repreendeu a Jovem Amiga do Sábio, em tom de brincadeira. Depois,
a Menina parou para rebobinar a história em sua mente, tentando descobrir em
que parte parara. Ela olhou para o teto, pensando, até lembrar-se do fio da
meada... – A pior parte da história eram os momentos de completa desesperança.
– Repetiu a Menina. – Alguns foram mais memoráveis, de uma maneira boa e ruim,
do que outros. Certa noite - não sei se em noite de outono ou inverno - o
desespero da garota não cabia mais dentro de si. A dor provocada pelos
pensamentos automáticos, a falta de um botão capaz de silencia-los, era tão
grande que ela procurou o pai. Diante dele, toda aquela angústia se desmanchou
em lágrimas e a garota, abraçada ao pai, chorou alto, transbordando tudo o que
sentia, numa melodia triste entrecortada por soluços. Eles passaram algum tempo
em pé, enquanto ela não se acalmava, e quando seu rosto já estava inchado de
tanto chorar e seu nariz entupido, os dois sentaram na beira da cama. Ela
repetia que não aguentava mais aquela situação, que doía muito. – A Menina
parou um instante para pensar. Estava decidindo sobre o que sabia. – Eu não sei
como foi para o pai da garota vê-la daquele jeito. Nunca tive a oportunidade de
perguntar. O que eu sei é que ele sabia como ajudá-la em momentos como aquele,
como confortá-la. Não só ele, mas a mãe dela e até o irmão com seu jeito nada
fofo, mas muito adorável. Os três conseguiam fazê-la sorrir. E isso, Amigo
Sábio, tornava a garota mais forte. – Mais uma vez, as lágrimas escapavam dos
olhos do Sábio.
- Você sabe contar muito bem uma história, Doce Menina! –
Comentou o Sábio, enxugando as lágrimas, que nesse ponto molhavam sua camisa
azul cor do céu. A Menina sorriu.
- Mas não foi só a família dela que fez parte dessa longa
jornada contra o T.O.C. Percebendo que a filha não estava bem, os pais
procuraram ajuda psicológica e psiquiátrica, na esperança de que os
especialistas ajudassem a garota e, talvez, a eles mesmos. Depois de escutar a
paciente e conversar com os pais, o tratamento começou com ajuda de um antidepressivo
e um ansiolítico. No começo não haveria melhora dos sintomas depressivos, pois
o efeito só começa algumas semanas depois do início do tratamento. Além dos
fármacos, o psiquiatra pediu que a garota fizesse uma lista com todas as manias
que tinha até o momento da próxima consulta. Obediente, ela listou em um papel
de caderno, tudo que fazia para evitar desastres catastróficos – O Sábio riu. –
Eu sei, é meio redundante. – A Menina concordou. – Quando voltou ao consultório
na semana seguinte, o psiquiatra pediu que ela escolhesse uma das manias e
tentasse excluir da lista. Depois de reler o que tinha escrito, escolheu a que
parecia mais fácil dentre aquela lista quase infindável do que alguns chamariam
de “maluquice” e tentou, nos dias que seguiram, eliminá-la.
- Ela conseguiu?
- Algumas sim, outras não. Às vezes quando tentava resistir
ao impulso de lavar as mãos, por exemplo, ela era dominada por uma ansiedade
crescente. Nos primeiros minutos, continuava a repetir para si mesma “você não
vai lavar as mãos, você não vai lavar as mãos”. Infelizmente, a angústia vencia
e mais uma vez, lá estava ela, lavando a mão compulsivamente. – O Sábio se
entristeceu, mas logo sorriria novamente com o que Menina viria a dizer. – Mas
ela começou a melhorar. Depois de um tempo de tratamento, mesmo com medo,
contou as amigas sobre o T.O.C. e, então, junto à família, ao psiquiatra e as
psicólogas, o grupo de amigas começou a ajudá-la.
- Por que com medo?
- Acho que na época, nem todo mundo considerava normais aqueles que tomavam remédio controlado.
- Consigo imaginar o alívio que ela sentiu quando descobriu
os amigos maravilhosos que tinha.
- Foi um sorriso de orelha a orelha. Acho que essa foi uma das vezes em que a palavra amizade e
companheirismo fizeram tanto sentido.
- E depois disso? – O Sábio agora começava a sentir que sua
neta melhoraria. Apesar de ser médico, não costuma conviver com pacientes que
tinham algum tipo de ansiedade, Mas mais do que isso, a neta era família e
todos os seus sintomas colocaram a prova tudo o que o Grande Amigo da Menina
sabia sobre psiquiatria.
- Depois disso, a garota conseguiu, aos pouquinhos, voltar
a estudar o conteúdo das disciplinas. Suas notas aumentaram, principalmente em
matemática, a matéria que ela mais amava. O coordenador do terceiro ano também
passou a ajudá-la. Ele, vez e sempre, estava lá para acompanhar o seu progresso
e, toda vitória da garota, ela sentia que era dele também. Posso dizer que ele
teve papel essencial na vida dela. - Agora as lágrimas que caíam dos olhos do
Sábio eram de alegria, voltando a dar voz à esperança. – Quando a garota voltou
a entrar no quarto dela, um dia antes do aniversário do pai, depois de tanto
tempo sem pôr os pés ou até mesmo encara-lo, ele foi uma das primeiras pessoas
a ter conhecimento sobre uma de suas primeiras conquistas dessa “desventura em
manias”. – O Sábio riu com o trocadilho, não tão bom assim – segundo a Menina,
claro.
- E quem foi a primeira pessoa a descobrir? Sem contar com
a família.
- Foi uma amiga que também tinha experiência com o T.O.C.
Depois de entrar no quarto e chorar de tanta alegria com a família, a garota
ligou chorando para a amiga, tão emocionada que era difícil entender o que ela
dizia.
- Acho que esse foi um ano memorável para ela né? Cheios de
histórias pra contar... – A Menina riu.
- Quando a garota ia para casa das amigas, em uma época
menos difícil, era engraçado vê-la se desdobrar para passar na frente da
televisão. Na casa de uma delas, não tinha saída, ou ela passava pela frente ou
ia engatinhando pro outro lado da sala.
- Ela não ficava constrangida?
- As amigas sabiam de suas manias e as duas tiravam onda
toda vez que se encontravam ali.
- E como ela fazia para tocar no chão?
- Ela “poluía” as mãos e depois lavava na cozinha. O
desafio era só atravessar a sala. O resto da casa era seguro. – A Menina parou
um pouco, pensando nos momentos bons da história. Ela sorriu de orelha a
orelha. – Com a ajuda e o carinho de tanta gente, as notas dela melhoraram, mas
não foram suficientes para recuperar todo o vermelho do seu boletim. De 11
disciplinas, ela foi para final em 9. As piores eram história e filosofia. Ela
precisava tirar 6,5 em filosofia e 6,0 em história. Tarefa nada fácil para quem
passou o ano todo não conseguindo tocar nos livros. Mas ela conseguiu, por
incrível que pareça. Tirou um décimo a mais do que precisa em filosofia e ficou
acima da média em história.
- Mais do que 7,0?
- 7,2. A maior nota que tirou em história naquele ano e
provavelmente a única que foi acima da média. Mas, para ela, a nota mais
importante foi a de matemática. Ela conseguiu mais de 9,0 na final, depois de
um ano com gosto amargo na boca por estar decepcionando Pitágoras e todos os
matemáticos por quem ela era apaixonada. –– O Sábio riu, achando graça de como
para alguns, talvez a menor parte da população, a matemática era simplesmente
incrível. – A Menina parou por alguns instantes, lembrando-se de repente de um
Professor de Matemática inesquecível, que também contribuíra para que aquele
ano fosse menos difícil. Por isso, ela decidiu que não poderia deixar esse
pequeno trechinho de fora. – Na época em que começou a melhorar, voltando a
estudar Matemática, um dos Professores do 3º ano, acho que o de Aritmética, ao
saber que a garota não conseguia tocar na apostila que comprara no início do
ano letivo, por estar “poluída”, ofereceu um exemplar de graça para que ela
pudesse acompanhar as aulas e estudar. Até onde eu sei, em 2019, ela ainda
tinha esse exemplar guardado no meio dos livros. – Os olhos do Sábio se
encheram de lágrimas, emocionado com aquele, aparentemente, pequeno gesto. – Depois de passar de ano, veio o resultado do
vestibular e mais uma vez, surpreendendo os pais, a garota passou em Ciências
biológicas com ênfase em Ciências ambientais na universidade federal de
Pernambuco.
- Ciências biológicas? E não matemática? – Perguntou o
Sábio, surpreso.
- Acho que me esqueci de comentar que no último ano ela se
apaixonou por biologia.
- Mas ela desistiu no meio do caminho... – Apostou o Sábio.
– Não parece muito a cara dela. – A Menina sorriu.
- Não. Ela terminou Ciências biológicas, por incrível que
pareça. Mas não foi assim tão fácil, porque quando as aulas começaram, a garota
não conseguia entrar em ônibus, nem em táxi, e, quando entrava, era uma
tortura.
- Por que ela não entrava?
- Porque achava que os ônibus e os táxis estavam poluídos.
Se entrasse, alguma coisa ruim aconteceria na certa. Por isso, o pai dela
precisou levá-la e buscá-la todo dia, durante quatro anos. Era desgastante
tanto para ele quanto para ela.
- Nenhuma vez ela andou?
- Andou, mas sempre que precisava, levava uma muda de roupa
e uma segunda bolsa. Quando chegava a faculdade, entrava no banheiro de um
departamento perto do centro onde estudava e trocava de roupa e bolsa. O
problema é que, às vezes, por acreditar que a roupa limpa tinha sido poluída em
alguns pontos, ela se molhava toda para “purificar” a calça, a blusa e a bolsa.
Todo mundo reparava e as pessoas que não a conheciam perguntavam o que tinha
acontecido. Como não sabia como explicar, ela inventava alguma desculpa e
torcia para que os outros acreditassem.
- Na faculdade foi diferente? Ela preferiu não contar para
os colegas de turma?
- De início, ela não contou, mas depois que fez amizade,
explicou algumas de suas manias para os amigos. Em uma ocasião, na volta para
casa, o grupo que voltava de carona parou em uma padaria para comprar pão e
queijo. Como tinha um jornal bem na entrada, ela disse para as duas amigas que
esperaria ali, perto da porta, para não se poluir. A dupla, entretanto, ao
invés de ir comprar o que precisava para chegar logo em casa, fez uma proposta
para a garota. Elas, cada uma de um lado, cada uma segurando uma mão, passariam
juntas pela frente do jornal. E assim fizeram. – Contou a Grande Amiga do Sábio,
sorrindo. – Acho que essa foi uma das
vezes em que a palavra amizade e companheirismo fizeram tanto sentido. –
repetiu a Menina, a mesma frase que falara mais cedo na conversa.
- Que bonito, Doce Menina! – Emocionou-se o Sábio mais uma
vez.
- Outra amiga que também marcou a passagem da garota pela
faculdade era conhecida por morar depois do fim do mundo. Como ficar no Centro
de Ciências biológicas era muito estressante – logo na entrada havia, quase
sempre, o jornal do dia, com aquelas manchetes sensacionalistas, para quem
quisesse ler – a garota preferia ficar nos banquinhos do departamento de
nutrição. A amiga não parecia se importar em acompanhá-la. Elas passavam tantas
horas ali que, em determinado momento, era difícil para quem observava do
estacionamento saber se elas eram alunas de Ciências Biológicas ou de Nutrição.
– Contou a Menina. – Acho que essa foi
uma das vezes em que a palavra amizade e companheirismo fizeram tanto sentido.
– Repetiu a Grande Amiga do Sábio mais uma vez. O Sábio sorriu.
A Menina parecia prestes a contar o próximo
capítulo da história da garota quando, de repente, lembrou-se de algum detalhe,
estalando os dedos. O Sábio se assustou. A Menina riu.
- Além de gastar o tempo em um daqueles banquinhos de
nutrição, a amiga – que sempre carregava consigo uma garrafa de água – era a
fonte de gotas d’água que a garota precisava para “despoluir” as mãos. Ela
sabia que fazendo isso estava reforçando as manias, dando força ao T.O.C., mas
era muito difícil controlar o impulso de lavar as mãos toda vez que acredita
estar poluída. Mesmo que ela persistisse durante algum tempo, sua concentração
desaparecia por completo. – A Menina parou durante meio minuto para pensar em
uma analogia que pudesse fazer o Sábio entender como a garota se sentia –
Imagine que você está em um ambiente fechado, estudando para as provas finais,
mas, apesar de todos estarem em silêncio, o gotejar do teto canta plic, plic, plic, plic... Não seria irritante? – O Sábio
assentiu. – Era o mesmo que ela sentia quando tentava ser forte e não ceder às
manias.
- Deve ser como inspirar e expirar, e mesmo assim não
sentir que o ar é suficiente... – O silêncio permaneceu ali por alguns segundos
antes de a Menina voltar a falar. Ela pensava em que parte da história tinha
parado. – Garrafa de água. Lavar as mãos. – Respondeu o Sábio, sabendo que a
Menina tinha dificuldade para encontrar o fio da meada. A Menina sorriu,
agradecendo ao Amigo mentalmente.
- Por falar em lavar as mãos, em meados de 2012, a garota
conseguiu seu primeiro estágio. O laboratório ficava no Departamento de
Nutrição e o grupo em questão trabalhava com Fisiologia, mais especificamente,
com fisiologia experimental voltada para a importância que período crítico –
gestação e lactação – tem sobre o desenvolvimento da prole.
- Ela foi trabalhar com ratinhos, então?
- Sim! Ela queria estudar os mecanismos por trás da
ansiedade, queria conhecer o mundo da neurociência.
- Ansiedade em roedores? – Questionou o Sábio. A Menina
sabia que o Amigo perguntaria sobre a existência, do que Calvin Hall1
(1909 – 1985) – “um dos mais criativos e notáveis psicólogos dos Estados Unidos
entre 1935 e 1975”3 – chamaria de emocionalidade, nos ratinhos. No
início de sua carreira, Hall estudou o temperamento e a genética do
comportamento em ratos, deixando como legado um dos testes comportamentais mais
utilizados até os dias de hoje – o Campo aberto. A partir de 1935, no entanto,
o foco de seu trabalho passou a ser o estudo os sonhos, o que levou a contribuições
teóricas, metodológicas e empíricas.
- Não ansiedade em si, mas comportamentos relacionados à
ansiedade. – Explicou a Menina – Situações que reproduzam alterações
fisiológicas semelhantes àquelas experimentadas durante um momento de
ansiedade...
- O que também não garante que seja ansiedade... – Comentou
o Sábio. A Menina assentiu.
- Até porque medo, raiva e esperança desencadeiam
alterações semelhantes. Elas não são exclusivas da ansiedade2. – O
Sábio balançou a cabeça, concordando com a Menina. – Acho que saímos dos
trilhos.
- Onde estávamos mesmo? – Perguntou o Sábio, mais para si
mesmo do que para a Menina. Demorou menos de um minuto até que os dois
encontrassem o caminho de volta para a história da garota.
- Em 2012, na época em que a garota encontrou o primeiro
estágio... – Antes de continuar, entretanto, a Menina organizou a ordem da
história que queria contar. Era mais difícil do que ela imaginava.
- Não sabe por onde começar? – Perguntou o Sábio. A
pergunta de seu Grande Amigo a pegou de surpresa. Ela assentiu.
- Para ser honesta, não lembro o que exatamente queria
contar. Sei que tem a ver com o primeiro estágio...
- Mas você não sabe que detalhe queria compartilhar. – Mais
uma vez, a Menina assentiu com a cabeça. – Deixe-me ajudá-la. Antes de
entrarmos na questão da emocionalidade, você falava sobre lavar as mãos
compulsivamente.
- ISSO! Exatamente isso! – A Menina respirou fundo e
finalmente recomeçou de onde tinha se perdido tantas vezes. Eram tantos os
detalhes que não esquecê-los parecia uma missão impossível – Trabalhar com
animais, naquela época, significava trocar a maravalha e lavar as gaiolas
sujas... – O Sábio franziu o nariz ao imaginar a cena. A Menina riu. – Pelo
menos, a Orientadora estava lá para ajudá-la sempre que podia. Para falar a
verdade, a Orientadora parecia mais aluna de graduação do que alguém que estava
prestes a defender o Doutorado. Eles disseram que ela tinha 27 anos, mas a garota
desconfiava que aquilo fosse história para tartaruga dormir. Se fosse para
chutar uma idade, a Orientadora teria no máximo 25 anos.
- Era mesmo história para tartaruga dormir? – Perguntou o Sábio,
achando graça. Normalmente, quem usa essa expressão popular diz “história para
boi dormir”, mas como a Menina tinha um jeito próprio de usar as palavras, não era
surpresa descobrir que ela fizera um pequeno ajuste para ser mais ela e menos
os outros.
- Não, a Orientadora realmente tinha 27 anos. – Antes que a
história se perdesse mais uma vez, a Menina voltou ao ponto – Naquela época, depois
de trocar as gaiolas e lavá-las, as duas guardavam o jaleco e passavam no
banheiro para lavar as mãos.
- Higiênicas! – Comentou o Sábio. A Menina riu.
- Só que a garota não
lavava as mãos uma única vez, porque, mesmo que ela esfregasse bem, alguma
coisa lhe dizia que não era suficiente, que suas mãos não estavam livres dos “fluidos
negativos”. Por isso, ela fazia o mesmo ritual pelo menos umas cinco vezes. Era
constrangedor, claro, mas como sempre dizia “é melhor prevenir do que remediar”.
- O irônico é que ao lavar as mãos cinco vezes, ela estava
fazendo justamente o contrário. Ela remediava o T.O.C. ao invés de preveni-lo. –
A Menina assentiu.
- Ao perceber que a Orientanda lavava cada vez mais as mãos,
a Jovem Orientadora dizia “Hoje, vamos lavar as mãos quatro vezes”.
- E dava certo? – Perguntou o Sábio, ao mesmo tempo,
curioso e esperançoso.
- Infelizmente não! A garota lavava as mãos quatro vezes,
mas, no caminho para a sala dos estudantes – lugar em que o grupo de pesquisa
ficava –, ela descia e lavava mais uma vez.
- Poxa. – Lamentou o Sábio. – Que pena!
- Calma, a história ainda não terminou... Nem a Orientadora
desistiu. Ela sempre tentava ajudar a garota como podia. Quando a mania de
lavar as mãos compulsivamente sumiu, outra apareceu em seu lugar. Agora, ao invés
de gastar o tempo “despoluindo” as mãos, a garota passava a maior parte do dia
com as mãos fechadas, segurando os escapulários que tinha nos pulsos. Ela acreditava
que assim estaria protegida dos “fluidos negativos”, fluidos esses que estavam a
espreita em todo e cada lugar. – A Menina fechou as mãos, como quem segura o
fio solto de uma pulseira de tecido, para demonstrar ao Amigo a situação. O Sábio
suspirou tristemente, ao perceber como aquilo deve ter sido estressante. – Quando
as duas se reuniam para falar das atividades pendentes – apresentação em
congresso, TCC, currículo, etc. -, a Orientadora percebeu que a Garota estava
sempre com as mãos fechadas. – A Menina parou de repente e riu. – Acho que as
palavras que a Orientadora mais usou com a garota foram “abra as mãos”. – O Sábio
se sentiu confuso, por que a Menina ria? Antes que pudesse pôr seu questionamento
em palavras, sua Grande Amiga respondeu:
- Porque com o tempo, a lembrança de ouvir “abra as mãos” deixou
de fazê-la pensar no T.O.C.; deixou de lembrá-la da dor que sentia ao passar
tanto tempo com as mãos fechadas e encurvadas. O “Abra as mãos” tornou-se aquela canção que todo bom músico compõe ao
olhar pra trás e perceber que a vida continua. Que as recordações podem ganhar
novos significados e, por isso, novas cores, novos sabores. – Sem pedir
licença, as lágrimas do Sábio transbordaram, e, no meio daquela chuva de
sentimentos, ele sorriu com a esperança nos olhos, como quem finalmente compreende
o que pode fazer pela Neta.
Referências
bibliográficas:
1Hall, Calvin S.;1934.
Emotional
behavior in the rat.
2Lader, Malcolm.; 1972.
The nature of anxiety.
3A Brief Biography of Calvin S. Hall – The guy
who started this whole thing. Disponível em <https://dreams.ucsc.edu/About/calvin.html>.
Acessado no dia 25 de Maio de 2019.
Comentários