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"A arte e a vida se imitam" - Autor desconhecido


A Menina ensaiava para o recital da escola no auditório. Ela tocava piano quando o Menino chegou:
- Sabia que te encontraria aqui. – De costas para ele, ela sorriu.
- Sabia que me encontraria. – Os dois namoravam há um ano e se conheciam mesmo. O Menino subiu os três degraus que davam no palco onde ficava o piano e abraçou a namorada pelas costas. Ele beijou sua bochecha e mordiscou sua orelha, deixando a Menina nervosa.
- Assim, você me desconcentra, Amor – Disse a Menina com o coração já acelerado.
- Ah, é? – Sussurrou ele no ouvido dela, enchendo-a de beijos. A Menina parou de tocar a canção composta para a apresentação do final de semana e se deixou envolver pelos braços e beijos do namorado. Depois de um tempo, com muita dificuldade, ela conseguiu “escapar”.
- Você está me atrapalhando... – Falou ela, tentando resistir ao Menino. Ele insistiu, sabendo que a Menina desistiria. Só foi necessário poucos segundos para que ela cedesse aos beijos dele. Os dois namoraram por um tempo, até finalmente voltarem a atenção para o piano. O recital seria em poucos dias, afinal... – A Menina ensaiou mais algumas vezes antes de começar a tocar músicas infantis. Os dois gargalhavam com as vozes diferentes que faziam.
- Então? – Perguntou o Menino, depois de sua última imitação, mal conseguindo falar de tanto rir. A Menina gargalhava sem parar a minutos e foi preciso muito esforço para fazê-la ficar séria.
- Horrível. Você é péssimo, Amor. Pior que minha irmãzinha. – O “seu problema”, como gostava de chamar o Menino, fingiu ficar ofendido.
- Olha quem fala: a dona da voz mais aguda e desafinada deste teatro – Disse ele, tentando imitá-la.
- Somos os únicos aqui, seu besta – Brincou a Menina, olhando ao redor, antes de voltar a olhar para ele. O Menino vocalizou um “HAHA” antes de confessar:
- É assustador dizer isto, mas já escutei piores. – A Menina apertou o nariz do namorado a fim de repreendê-lo.
- Ai, Amor! Doeu. – Ela revirou os olhos e voltou a tocar. O Menino acompanhou a namorada sendo sua mão direita. Eles tocaram juntos durante tanto tempo que perderam a hora de saída. Só quando o celular de um deles tocou, os dois perceberam que já eram três da tarde. Eles se entreolharam e preocupados ligaram para os pais para avisar que ainda estavam no colégio. Os pais do Menino não atenderam. Mas ele conhecia a dupla, não atenderiam nunca o celular, pois nas palavras da mãe “é um desperdício de tempo falar ao telefone quando se pode conversar pessoalmente”.
Depois de cobrirem o piano e arrumarem a mochila dela, a Menina e o Menino tentaram sair do auditório. A porta, no entanto, estava trancada.
- Ah não... – Preocupou-se ela. Ele apenas achou graça.
- Você sabe arrombar portas? – Brincou o Menino. A Menina não achara graça.
- Se eu soubesse, a gente já estaria fora daqui. – Ela fechou os olhos, pensando no que deveria fazer. Ela pegou o celular e tentou ligar novamente para os pais, desta vez para pedir ajuda. Nenhum dos dois atendeu. – Seu celular tem bateria? Sua mãe já voltou de viagem?
- Não, eles só voltam no final de semana. Nenhum dos dois atende também.
- Droga! – A Menina batia um dos pés ritmicamente, fazendo o mesmo com a mão que segurava o celular. Ela parecia apreensiva. O que fariam se não conseguissem falar com o professor de música ou com a diretora, que também não pareciam estar perto do telefone? Ela não sabia. De tanto tentar falar com alguém, pouca bateria restava e nenhum dos dois trouxera carregador. - O que faremos agora? – Perguntou a Menina, dando-se por vencida depois de mais algumas tentativas. Ela sentou na beira do palco, sentindo-se cansada. O Menino sentou ao seu lado apoiando o corpo nos braços – Acho que da próxima vez precisaremos fazer mais barulho. – Disse a Menina, fazendo o Menino sorrir. O senso de humor dela ainda permanecia ali, mesmo que por um fio.
- Mais? Só se você quiser estourar os nossos tímpanos. – Os dois gargalharam mais uma vez. Toda aquela situação tornava-se cada vez mais cômica de um jeito nervoso – Ou se o professor de música responsável pelo auditório parar de trabalhar com fones de ouvido. – O Menino tinha razão. O homem só andava pelos corredores escutando música e sempre muito concentrado, apreciando cada nota da melodia. - Você sabe o que ele sempre diz, não sabe? – Ele não esperou ela responder. - Que um minuto sem música é um minuto perdido...
- Pensei que a frase fosse “um dia sem sorriso é um dia perdido”. – Corrigiu a Menina.
- Chaplin não se incomoda com a pequena alteração, tenho certeza. – O Menino afirmou com tanta convicção que fez a Menina rir novamente. - Foi uma bela homenagem ao Charles, você não acha? – Ele falava de maneira tão séria que ela quase acreditou. Mas a Menina o conhecia, ele estava brincando.
- Você o conheceu em uma de suas vidas? – Perguntou a Menina, curiosa.
- Provavelmente. Tenho o dom para o cinema mudo. – A Menina riu.
- Você não sabe nem se expressar com palavras, imagina com o corpo... - O relógio do Menino apitou, marcando 15:45. Os dois tentaram ligar mais algumas vezes para o celular dos pais de Lívia, mas a ligação sempre caía na caixa postal.
- Estamos condenados a passar a noite aqui. – Disse o Menino com cara de sapeca.
- Você não vale nada. – Brincou a Menina, lendo a mente dele.
- Eu sei e é por isso que você me ama.
- Quem disse que eu te amo? – Provocou ela, deitando no colo dele.
- Deixe-me ver, deixe-me ver. - Cantarolou o Menino, procurando alguma coisa no celular. - Aqui, achei! – Ele abriu as mensagens que guardava no celular e mostrou a namorada. A Menina enrubesceu, fazendo o Menino sorrir. – Ficou com vergonha, Amor? – Perguntou ele, achando divertido. Ela cobriu o rosto, esperando o sangue deixar suas bochechas. – Amor... – Começou ele, afastando as mãos dela do rosto. Ele beijou seu nariz, depois encostou sua testa na dela, deixando o assunto no passado. Ela retribuiu-lhe o beijo no nariz. Antes que a Menina se afastasse, o Menino aproveitou para roubar-lhe outro beijo não no nariz. Alguns minutos se passaram até os dois voltaram a conversar.
- Será que a coxia guarda muitos segredos? – Olhou a Menina para as cortinas que escondiam os bastidores da peça. – Você quer desvendá-los? – Ela se levantou e foi procurar o que o teatro tinha para contar. O Menino fez o mesmo. No primeiro baú, os dois encontraram roupas de época; no segundo, textos antigos com falas dos personagens de uma peça esquecida; no terceiro, os acessórios estavam guardados em pequenas caixas; e nos outros havia mais e mais indumentária das inúmeras peças feitas ao longo dos 40 anos do colégio. Algumas estavam tão velhas, que só cheiravam a mofo e estavam encobertas por poeira.
- Quanta história escondida... – Maravilhou-se a Menina. Os olhos dela brilhavam. – Quantas mais descobriremos se procurarmos em todos os outros baús e nesses armários? – Falou Lívia apontando para uma das paredes, coberta por um par de armários velho e empoeirado.
- Tenho uma ideia. – Disse o Menino, deixando a Menina empolgada. Ela sabia que seria uma das ideias. – Por que não escolhemos uma roupa de época e encenamos um ato da última peça da escola?
- Amei! – Falou a Menina transbordando alegria pelos poros. – Sabe, tenho a impressão de que você ficará muito bem de roupa de época. – O Menino sorriu. Ela se aproximou, puxando ele pela gravata (parte do uniforme do colégio) e cochichou poucas palavras em seu ouvido. Os olhos do Menino sorriram.
- Você está muito saidinha hoje. – A Menina fez uma careta.
- Não quer ganhar dois beijos? – Perguntou ela, sapeca.
- Dois? Só isso? – Perguntou ele fazendo bico. A Menina revirou os olhos.
- Depois negociamos. – Ela ainda segurava o Menino pela gravata, mantendo-o perto de si. – Então, em que época nós estamos?
- Final do século XIX.
- A última peça foi em um tempo tão recente?
- Pior, foi nos anos 2010. – Brincou o Menino.
- Cruzes! Vamos adaptá-la?
- Podemos escrever nossa própria peça, improvisar...
- “A arte imita a vida”? – A Menina passou os braços pelo pescoço do Menino ainda olhando-o nos olhos.
- Nós em outra vida. – Ele sugeriu. A Menina deu-lhe um beijo, adorando a ideia do namorado. – As roupas do século XIX estão em algum lugar por aqui. Tenho certeza que as vi.
- Estão ali. – Apontou ela. Ele olhou para trás e viu o baú cor do céu aberto. Os dois procuraram por pouco tempo até encontrarem um par que não combinasse com eles. Segunda a Menina, nenhum deles deveria se parecer com o seu “eu” do presente. Os dois trocaram de roupa e agradeceram pelo teatro está friozinho. Era tanto pano que a Menina disse que se voltasse no tempo, escolheria os anos 40. O Menino foi contra.
- Pronta? – Perguntou ele, ajeitando a camisa. Quando olhou para ela, encontrou em seu olhar uma pergunta. – O que você quer saber?
- Quem te deu uma cueca verde limão? Suas ex-namoradas? – Perguntou a Menina, misturando ciúme e graça na voz. - Ele riu e depois sorriu. O Menino se aproximou, envolvendo a Menina em seus braços e respondeu:
- Só tenho uma namorada. Nunca tive outras. E a cueca, foi minha mãe que me deu. – Lívia agora gargalhava. – Segundo ela, era a única cor que tinha na loja. Mas, tenho minhas dúvidas. Na noite anterior, deixei os pratos sujos na pia. – Disse ele, fingindo estar envergonhado de não lavar os pratos.
- Cara de pau. Bem feito pra você. Quem sabe da próxima vez, além de lavar os pratos, você não lava as roupas... – O ciúme sumira, mas a graça ainda continuava em sua voz. Os dois se beijaram mais uma vez antes de saírem da coxia para a plateia inexistente. Ele para um lado, ela para o outro.
- Começo eu ou você? – Perguntou a Menina.
- As damas são sempre as primeiras. – Disse ele, galante. A Menina pensou um pouco antes de caminhar em direção ao namorado. Ele fez o mesmo. Os dois se esbarraram de propósito, olhando um nos olhos do outro depois do primeiro encontro. – Eles passaram alguns minutos se encarando (e segurando o riso), quando o Menino disse:
- “Desculpe-me senhorita, não a vi chegar” – A Jovem pôs a mão no peito, fingindo estar ofendida.
- “Não se preocupe, Jovem Cavalheiro. Também não o vi passar” – Ela se apressou em ir embora, sendo impedida pela mão dele.
- “Espere, eu não quis ofendê-la. Perdoe-me.” – Aliviando a expressão de desgosto, a Jovem sorriu.
- “Perdoe-me também. Não quis ser grosseira”.
- “Jamais”.
- “Diga-me, Jovem Cavalheiro, o que o aflige? Vejo que carrega um semblante preocupado”.
- “De fato, Doce Senhorita. Acabo de saber pelo meu bom amigo que nosso mestre está doente”.
- “Não há esperança para o seu mestre?” - Perguntou a Jovem, preocupada.
- “Ainda não tenho certeza. As notícias que tenho são poucas. Para não dizer, inexistentes”.
- “Posso oferecer-lhe ajuda... Se o Jovem aceitar. - A Jovem esperou que ele se opusesse, mas as palavras não vieram. - Meu pai é médico e trabalha perto da taberna ‘Luar’. É consultório modesto, confesso, mas muito bem recomendado.” – O Jovem Cavalheiro sorriu. – “E, por sorte, fica perto da botica ‘Alfazema’”.
- “A senhorita me acompanharia?”
- “Não poderei. Sinto muito” – O Jovem pareceu menos animado e sorridente com a recusa da Jovem – “Não se preocupe. A taberna é conhecida. Irá encontrá-la facilmente” – Ele sorriu.
- “Sei onde fica a taberna, Doce Senhorita”.
- “Então, não haverá problema em localizar o consultório de meu pai”.
- “Mas a perderei de vista” – A moça enrubesceu.
- “Até mais ver, Jovem Cavalheiro” – Disse ela, despedindo-se. Em resposta, o Cavalheiro gritou seu nome ao vento ao vê-la se afastar. A Jovem olhou para ele uma última vez e disse:
- “Lívia”.
- “Lívia”. – Repetiu ele para si mesmo.
Ao final do improviso, a Menina e o Menino sorriram um para o outro, contentes com o primeiro encontro imaginado de uma vida passada. Cansados dos ensaios, de desvendar histórias e de criar uma, os dois procuraram uma manta para deitar. Por sorte, o Menino achara uma e a Menina outras duas. As maiores serviram para cobrir o chão do teatro e a terceira para fazer um travesseiro improvisado. Já deitados, a Menina perguntou mais para si mesma do que para o namorado:
- Quantas histórias nasceram de amores reais? Todas? A maioria delas? – O Menino sabia que a namorada divagava, deixando-o viajar em suas ideias sorridentes - Imagine os filmes que assistimos: quantos deles não vivemos juntos ao roteirista uma experiência real? – Seus pensamentos aceleravam à medida que as perguntas lhe escapavam. As palavras não cabiam dentro de si. - Quantas vidas nós vivemos lendo um livro, vendo uma peça ou assistindo a uma série? Quanto daquilo que compartilhamos com outros tantos desconhecidos foi real? – Ela finalmente respirou um pouco antes de transbordar as últimas perguntas que sua mente inquieta faziam. - Quantas histórias não foram imaginadas em um dia chuvoso ou ensolarado até tornarem-se reais para alguém? Quantas? – A Menina parecia cada vez mais empolgada, fazendo o Menino sorrir. Os dois conversaram sobre isso durante um bom tempo até caírem no sono. Quando voltaram a abrir os olhos, eram 22:30. Eles passaram um tempo em silêncio, até a Menina se corrigir o que dissera mais cedo:
- "A arte e a vida se imitam"! – Citou a Menina, entendendo o que um outro autor queria dizer.
- Mutuamente – Disse o Menino, entendendo o que ela queria dizer.
- Quem sabe um dia um alguém desconhecido não vive uma versão adaptada do que encenamos hoje?
- Quem sabe todos os dias, alguém não viva nossa história improvisada? – A Menina olhou nos olhos do seu primeiro amor sorrindo com a imaginação de um futuro diário...
- Quem sabe? – Eles dormiram juntos naquele colchão improvisado em um palco que era palco das mais variadas peças há quarenta anos e, apesar de ninguém saber, os dois tinham encenado mais uma, expandindo o universo daquele pequeno teatro de uma escola, por muitos, desconhecido.   

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