O conto abaixo finaliza a história de "A Menina e o Sábio". Mas calma! Ainda virão muitas histórias sobre eles. Essa é só a última cronologicamente falando! Como vocês sabem vou e volto no tempo como se não houvesse amanhã (hahahaha). Para que seguir uma temporal linear se podemos misturar os tempos passado e futuro, não é mesmo? Espero que gostem!
Fevereiro de dias muito além do
horizonte
“Pedacinhos
do Céu em pingos de chuva
Molham,
lavam e levam aquilo que machuca”
Para
não interrompê-la, o Menino preferiu esperar a Menina terminar o que parecia
ser um teste de melodia. Poucos segundos tinham se passado quando um sorriso
iluminou o seu rosto – ele parecia encantado com a leveza que a Menina
transbordava. Já fazia pouco mais de um minuto que o Menino observava a Menina quando,
de repente, ela deu meia-volta e ficou de frente para ele. A primeira reação da
Menina foi colocar as duas mãos na boca como se só assim fosse possível parar
de cantar. Logo em seguida, ela olhou para baixo, envergonhada, com o rosto todo
vermelho. O Menino, então, disse:
– Desculpe-me! Não foi minha intenção
deixá-la sem graça. Achei melhor esperar você terminar. Não queria atrapalhá-la...
– A Menina continuava muito vermelha. Ela ainda olhava para baixo e, agora,
mexia sem parar na bolsinha de celular que carregava no pescoço. Como aquelas
primeiras palavras não pareciam ter qualquer efeito positivo sobre a Menina, o
Menino completou – Eu gostei mais da segunda versão! Nem tão rápida, nem tão
lenta. – Ele pensou um pouco na letra e tentou reproduzir o ritmo: – “Pedacinhos do Céu em pingos de chuva.
Molham, lavam e levam aquilo que machuca” – A Menina sorriu e, finalmente,
levantou a cabeça e olhou nos olhos do Menino pela primeira vez. O silêncio foi
prolongado por mais tempo do que seria esperado. Existia algo naquele olhar que
espalhou uma sensação de alívio pelo corpo da Menina. Mas alívio de quê? Ela
não sabia! O Menino também sentiu algo semelhante. Aquele olhar era familiar de
alguma forma. Como? Ele também não sabia! Antes que as palavras pudessem
transbordar de um dos dois, o Coordenador do Ensino Médio apareceu na quadra.
Ele tinha deixado a Menina ali durante alguns minutos para atender uma ligação
importante.
– Desculpe-me a demora. A ligação...
Afonso?! – O Menino estava de costas para o Coordenador, mas, mesmo assim, foi
reconhecido. Ao ouvir o próprio nome, ele deu meia-volta e ficou de frente para
o responsável pelo ensino médio! – O que você está fazendo aqui?
– É início do ano... – Explicou o Menino
sem precisar de fato explicar. Marquinho sabia que a dor que o Menino sentia
tornava-se insuportável no início do ano.
– Ainda não descobriram a causa? – O
Menino fez que não com a cabeça. – Que pena! Espero que encontrem logo o
motivo. – Depois de uma pequena pausa, o Coordenador olhou do Menino para a
Menina e de volta para o Menino. – Já que você está aqui, poderia me fazer um
favor? – O Menino assentiu. – Alice se mudou para cá no início do ano com a
família e foi transferida para a nossa instituição! Ela veio conhecer o Colégio
hoje e eu fiquei responsável de mostrá-la nossas dependências... – O
Coordenador parou e decidiu ir direto ao ponto: – Você poderia terminar de
apresentá-la ao “Passo a Passo”? Tenho um problema urgente para resolver. Não
falta muita coisa.
– Posso sim! – Sorriu Afonso. Marquinho
agradeceu, pediu desculpa a Alice e saiu do ginásio às pressas. O Menino voltou
a ficar de frente para a Menina e se apresentou oficialmente, estendendo a mão
esquerda. Ela fez o mesmo. – Afonso!
– Alice. – Os dois se olharam nos olhos
por tempo inclassificável antes de Afonso quebrar o silêncio.
– O que você já viu do Colégio? – A
Menina, então, listou os ambientes que já tinha conhecido. Ela ainda não tinha
ido ao auditório, lugar onde o grupo de teatro e de música ensaiava. No final
do ano passado, o pai de um estudante doou um piano novinho para o colégio –
Acho que já sei nosso próximo destino! – Afonso indicou a direção e os dois
foram para o auditório.
– Obrigada – Agradeceu Alice. Afonso
sorriu.
– Não há de quê!
– Você ia treinar, né?
– Não exatamente! É para me distrair da
dor que sinto... – Foi nesse momento que o Menino percebeu que não estava
sentindo dor alguma. Ele parou de andar e olhou para baixo, para o próprio
corpo, procurando algum sinal dela. Nada! O que estava acontecendo? A Menina só
parou dois passos depois, assim que percebeu que o Menino não a acompanhava.
Ela deu meia-volta e ficou de frente para ele.
– Está tudo bem? – Ele não respondeu de
imediato! – Afonso? – Uma expressão de confusão apareceu no rosto do Menino,
enquanto a preocupação estava estampada no rosto da Menina.
– Não estou com dor! – Alice não
entendeu. Afonso ainda olhava para baixo como se procurasse algum indício de
que estava delirando. Não estava! – Não estou sentindo nada. – A Menina não
respondeu. Esperou que ele voltasse a falar. – Desde pequeno, eu sinto dor no
peito. E ela sempre piora no início das aulas. Meus pais e eu já fomos a vários
especialistas em busca de tratamento, mas até agora nada deu certo... – Ele fez
uma pausa. – Mas agora eu não estou sentindo nada. A dor sumiu! – A preocupação
que a Menina sentiu deu lugar ao alívio. Foi nesse momento que Afonso percebeu
que não sentia nada desde a quadra, desde o momento em que encontrara a Menina.
Afonso não sabia, mas, às vezes, algumas dores vêm de outras vidas e essas
dores podem levar muito tempo para serem cicatrizadas, porque os remédios para
alma, como reencontros muito esperados pelo coração, podem demorar um pouco
mais para serem encontrados. Eles, às vezes, têm um tempo de ação um pouco
maior do que os remédios comuns. No caso do Menino, o remédio para essa dor que
já durava 15 anos desta vida foi encontrar um pedaço de si perdido que vivia em
outro coração. O remédio de Afonso foi encontrar Alice de novo. Nesse momento,
o olhar do Menino encontrou o olhar sorridente da Menina mais uma vez, e ele
não pôde deixar de sorrir. Aquele machucado de uma vida passada, esquecido
apenas conscientemente, estava finalmente fechado e de agora em diante somente
dores desta vida seriam permitidas. Nem todo mundo sabe, mas entre o fim e o
recomeço pode existir um espaço de tempo indefinido. Espaço esse que funciona
como um intervalo necessário para recuperar o fôlego. – Será que é um alívio
momentâneo? – Perguntou o Menino mais para si do que para a Menina, sentindo a
felicidade vacilar! Afonso já não olhava Alice nos olhos quando a ouviu dizer:
– Você disse que já sabia qual seria a
próxima parada... É algo que envolva música por acaso? – A Menina tentou
distraí-lo. Ela não queria que ele perdesse aquele momento sem dor pensando na
possibilidade de voltar a senti-la! É impressionante como, às vezes, o presente
(o agora) é deixado de lado para que o futuro, que pode até não acontecer, seja
vivido em pensamentos! – Estou curiosa! – Afonso sorriu.
– Espere até chegarmos lá! Você logo
descobrirá! – Os dois voltaram a caminhar em direção ao auditório. – Aquela
música... Foi você quem compôs? – Ela assentiu. – Eu gostei dos primeiros
versos.
– Obrigada. – Agradeceu a Menina. –
Ainda não está terminada, mas, pelo menos agora, já sei qual é o melhor ritmo!
– Então quer dizer que você levou a
minha opinião em consideração?
– Claro que sim! Por que não levaria? E,
para ser sincera, era a minha primeira opção também. – Afonso riu.
– Pronto! É aqui! Chegamos! Preparada
para conhecer o seu futuro lugar favorito do colégio? – Alice fez que sim com a
cabeça. – Quer fazer as honras? – A Menina abriu a porta com cuidado e foi
surpreendida pela presença de um piano de cauda. O instrumento estava em cima
do palco do lado esquerdo. – Você sabe tocar?
– Um pouco! – Respondeu a Menina – Posso?
– Por favor!
– Quer escutar como soa a música que
estou compondo no piano? – Afonso assentiu. Alice ajeitou o vestido vermelho
que usava, sentou-se no banquinho e tocou os primeiros acordes da melodia. O
Menino puxou um tamborete que estava ali perto e escutou o que a Menina tinha a
dizer através dos sons. Depois que terminou a primeira música, Alice tocou
outras, esquecendo-se um pouco do mundo ao redor.
– E você disse que só tocava um pouco! –
A Menina riu. Por cima dos acordes que o piano emitia, ela comentou:
– Como meu avô é pianista, considero uma
falta de respeito da minha parte dizer que toco bem.
– Foi com ele que você aprendeu a tocar?
– Alice assentiu.
– Ele diz que eu aprendi a tocar piano
antes mesmo de falar ou andar. – Afonso riu.
– Como não tenho um avô pianista e não
entendo muito de música, posso dizer que você é muito talentosa. – Ao ouvi-lo
dizer aquelas palavras tão doces, a Menina olhou o Menino nos olhos, parando de
tocar por uns instantes. O silêncio se estendeu mais uma vez por tempo demais.
Em determinado momento, Alice olhou para a boca de Afonso. Um pouco depois, ele
fez o mesmo. – Você quer ouvir mais alguma coisa? – Perguntou a Menina,
desviando o olhar para o piano.
– Só se for uma composição sua. – Alice
pensou um pouco em que canção tocar e escolheu uma melodia que se chamava
“Alegria”.
– Essa é para momentos felizes. Faz
parte da minha trilha sonora secreta. – O Menino sorriu. A canção era bem
animada e refletia bem o sentimento que dava nome a música. – Essa é para
quando estou com muita raiva. Não é exatamente uma composição. É só uma
confusão sonora irritada – O Menino riu. A próxima melodia tocada era para
momentos de tristeza. Era a preferida da Menina, porque, segundo ela, traduzia
perfeitamente os momentos de melancolia – era bastante precisa (palavras
ecoadas pelo próprio Avô). Por fim, a última composição era para aquelas
situações que nos dão medo, perfeita para ser trilha sonora de filmes de
suspense e terror. Quando Alice finalizou o último tema, Afonso aplaudiu. Ele
estava bastante impressionado!
– Tem mais alguma? – O Menino quis
saber. A Menina então tocou mais algumas canções do seu repertório. Ela só
parou quando lembrou que estava com o gravador do celular ligado. – Que foi?
– Eu me esqueci de desligar a gravação.
– Afonso não entendeu. Alice explicou enquanto tirava o celular da bolsinha que
estava pendurada no pescoço e parou a gravação. O áudio já tinha mais de 50
minutos. – Quando o Coordenador precisou sair para atender a ligação, fiquei
tanto tempo sozinha que decidi testar alguns ritmos para a letra que estou
compondo, aquela que você ouviu. Foi então que decidi gravar para não
esquecê-los. – Ela ainda mexia no celular quando perguntou: – Você se importa
se eu não apagar? Eu quero passar para o meu computador os testes que fiz.
Preciso mostrar ao meu Avô.
– Claro que não! Pode guardar! Na
verdade, será que você poderia compartilhar o áudio comigo? – Por essa, a
Menina não esperava. Alice olhou Afonso nos olhos tentando decidir se ele
falava sério ou se estava apenas brincando – Eu gostei da sua trilha sonora! –
A Menina pensou um pouco antes de responder.
– Se você prometer que não mostrará para
ninguém...
– Prometo!
– Me diz o seu número! – Ele falou
pausadamente e depois repetiu para confirmá-lo. Em menos de um minuo, o Menino
recebeu o áudio. Ele adicionou o número da Menina na lista de contatos e enviou
uma mensagem de agradecimento. Em resposta, Alice reagiu àquelas palavras com
uma carinha sorridente. Na foto de perfil da Menina, ela segurava um poodle
branquinho. A coleirinha que ele usava trazia um nome inusitado.
– O nome do seu cachorrinho é Iogurte? –
A Menina assentiu. O Menino riu. Dois segundos depois, o celular de Alice tocou.
– Alô! Oi, pai! Ainda estou no Colégio!
Quero ir sim! Daqui a cinco minutos? Vou para o portão de trás, então! Beijo!
Tchau! – Alice guardou o celular e se levantou. – Tenho que ir! Obrigada por me
mostrar o colégio, ou melhor, uma parte dele. – O Menino sorriu.
– Obrigada por compartilhar o áudio
comigo. – A Menina sorriu. – Você está em que ano?
– Primeiro ano F! E você?
– Seremos companheiros de turma, então!
Até semana que vem!
– Até! – Afonso observou Alice sair do
auditório. Quando ela fechou a porta atrás de si, ele voltou a olhar para a
foto do perfil que ela usava e falou o seu nome em voz alta sorrindo:
– Alice.
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