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Epílogo: Recomeço

O conto abaixo finaliza a história de "A Menina e o Sábio". Mas calma! Ainda virão muitas histórias sobre eles. Essa é só a última cronologicamente falando! Como vocês sabem vou e volto no tempo como se não houvesse amanhã (hahahaha). Para que seguir uma temporal linear se podemos misturar os tempos passado e futuro, não é mesmo? Espero que gostem!

Fevereiro de dias muito além do horizonte

             Antes de começar o ano letivo, o Menino tinha o hábito de treinar lances livres no ginásio do colégio na tentativa de se distrair. Por saber disso, o Zelador sempre deixava uma bola de basquete embaixo de um dos bancos de reserva para que o Menino pudesse usá-la. Desde pequeno, ele sentia uma dor constante que ficava insuportável algumas semanas antes do início das aulas. Isso sempre acontecia em Janeiro e em Julho. Nesse período incômodo, fazer alguma atividade física ou algo que exigisse bastante concentração ajudava. Naquela época do ano ninguém aparecia por ali, deixando o espaço todo livre para o Menino. No entanto, para a surpresa dele, uma garota loira mexia os braços ao redor do corpo e cantarolava em diferentes ritmos uma música que ele não conhecia. A canção dizia:

“Pedacinhos do Céu em pingos de chuva

Molham, lavam e levam aquilo que machuca”

            Para não interrompê-la, o Menino preferiu esperar a Menina terminar o que parecia ser um teste de melodia. Poucos segundos tinham se passado quando um sorriso iluminou o seu rosto – ele parecia encantado com a leveza que a Menina transbordava. Já fazia pouco mais de um minuto que o Menino observava a Menina quando, de repente, ela deu meia-volta e ficou de frente para ele. A primeira reação da Menina foi colocar as duas mãos na boca como se só assim fosse possível parar de cantar. Logo em seguida, ela olhou para baixo, envergonhada, com o rosto todo vermelho. O Menino, então, disse:

– Desculpe-me! Não foi minha intenção deixá-la sem graça. Achei melhor esperar você terminar. Não queria atrapalhá-la... – A Menina continuava muito vermelha. Ela ainda olhava para baixo e, agora, mexia sem parar na bolsinha de celular que carregava no pescoço. Como aquelas primeiras palavras não pareciam ter qualquer efeito positivo sobre a Menina, o Menino completou – Eu gostei mais da segunda versão! Nem tão rápida, nem tão lenta. – Ele pensou um pouco na letra e tentou reproduzir o ritmo: – “Pedacinhos do Céu em pingos de chuva. Molham, lavam e levam aquilo que machuca” – A Menina sorriu e, finalmente, levantou a cabeça e olhou nos olhos do Menino pela primeira vez. O silêncio foi prolongado por mais tempo do que seria esperado. Existia algo naquele olhar que espalhou uma sensação de alívio pelo corpo da Menina. Mas alívio de quê? Ela não sabia! O Menino também sentiu algo semelhante. Aquele olhar era familiar de alguma forma. Como? Ele também não sabia! Antes que as palavras pudessem transbordar de um dos dois, o Coordenador do Ensino Médio apareceu na quadra. Ele tinha deixado a Menina ali durante alguns minutos para atender uma ligação importante.

– Desculpe-me a demora. A ligação... Afonso?! – O Menino estava de costas para o Coordenador, mas, mesmo assim, foi reconhecido. Ao ouvir o próprio nome, ele deu meia-volta e ficou de frente para o responsável pelo ensino médio! – O que você está fazendo aqui?

– É início do ano... – Explicou o Menino sem precisar de fato explicar. Marquinho sabia que a dor que o Menino sentia tornava-se insuportável no início do ano.

– Ainda não descobriram a causa? – O Menino fez que não com a cabeça. – Que pena! Espero que encontrem logo o motivo. – Depois de uma pequena pausa, o Coordenador olhou do Menino para a Menina e de volta para o Menino. – Já que você está aqui, poderia me fazer um favor? – O Menino assentiu. – Alice se mudou para cá no início do ano com a família e foi transferida para a nossa instituição! Ela veio conhecer o Colégio hoje e eu fiquei responsável de mostrá-la nossas dependências... – O Coordenador parou e decidiu ir direto ao ponto: – Você poderia terminar de apresentá-la ao “Passo a Passo”? Tenho um problema urgente para resolver. Não falta muita coisa.

– Posso sim! – Sorriu Afonso. Marquinho agradeceu, pediu desculpa a Alice e saiu do ginásio às pressas. O Menino voltou a ficar de frente para a Menina e se apresentou oficialmente, estendendo a mão esquerda. Ela fez o mesmo. – Afonso!

– Alice. – Os dois se olharam nos olhos por tempo inclassificável antes de Afonso quebrar o silêncio.

– O que você já viu do Colégio? – A Menina, então, listou os ambientes que já tinha conhecido. Ela ainda não tinha ido ao auditório, lugar onde o grupo de teatro e de música ensaiava. No final do ano passado, o pai de um estudante doou um piano novinho para o colégio – Acho que já sei nosso próximo destino! – Afonso indicou a direção e os dois foram para o auditório.

– Obrigada – Agradeceu Alice. Afonso sorriu.

– Não há de quê!

– Você ia treinar, né?

– Não exatamente! É para me distrair da dor que sinto... – Foi nesse momento que o Menino percebeu que não estava sentindo dor alguma. Ele parou de andar e olhou para baixo, para o próprio corpo, procurando algum sinal dela. Nada! O que estava acontecendo? A Menina só parou dois passos depois, assim que percebeu que o Menino não a acompanhava. Ela deu meia-volta e ficou de frente para ele.

– Está tudo bem? – Ele não respondeu de imediato! – Afonso? – Uma expressão de confusão apareceu no rosto do Menino, enquanto a preocupação estava estampada no rosto da Menina.

– Não estou com dor! – Alice não entendeu. Afonso ainda olhava para baixo como se procurasse algum indício de que estava delirando. Não estava! – Não estou sentindo nada. – A Menina não respondeu. Esperou que ele voltasse a falar. – Desde pequeno, eu sinto dor no peito. E ela sempre piora no início das aulas. Meus pais e eu já fomos a vários especialistas em busca de tratamento, mas até agora nada deu certo... – Ele fez uma pausa. – Mas agora eu não estou sentindo nada. A dor sumiu! – A preocupação que a Menina sentiu deu lugar ao alívio. Foi nesse momento que Afonso percebeu que não sentia nada desde a quadra, desde o momento em que encontrara a Menina. Afonso não sabia, mas, às vezes, algumas dores vêm de outras vidas e essas dores podem levar muito tempo para serem cicatrizadas, porque os remédios para alma, como reencontros muito esperados pelo coração, podem demorar um pouco mais para serem encontrados. Eles, às vezes, têm um tempo de ação um pouco maior do que os remédios comuns. No caso do Menino, o remédio para essa dor que já durava 15 anos desta vida foi encontrar um pedaço de si perdido que vivia em outro coração. O remédio de Afonso foi encontrar Alice de novo. Nesse momento, o olhar do Menino encontrou o olhar sorridente da Menina mais uma vez, e ele não pôde deixar de sorrir. Aquele machucado de uma vida passada, esquecido apenas conscientemente, estava finalmente fechado e de agora em diante somente dores desta vida seriam permitidas. Nem todo mundo sabe, mas entre o fim e o recomeço pode existir um espaço de tempo indefinido. Espaço esse que funciona como um intervalo necessário para recuperar o fôlego. – Será que é um alívio momentâneo? – Perguntou o Menino mais para si do que para a Menina, sentindo a felicidade vacilar! Afonso já não olhava Alice nos olhos quando a ouviu dizer:

– Você disse que já sabia qual seria a próxima parada... É algo que envolva música por acaso? – A Menina tentou distraí-lo. Ela não queria que ele perdesse aquele momento sem dor pensando na possibilidade de voltar a senti-la! É impressionante como, às vezes, o presente (o agora) é deixado de lado para que o futuro, que pode até não acontecer, seja vivido em pensamentos! – Estou curiosa! – Afonso sorriu.

– Espere até chegarmos lá! Você logo descobrirá! – Os dois voltaram a caminhar em direção ao auditório. – Aquela música... Foi você quem compôs? – Ela assentiu. – Eu gostei dos primeiros versos.

– Obrigada. – Agradeceu a Menina. – Ainda não está terminada, mas, pelo menos agora, já sei qual é o melhor ritmo!

– Então quer dizer que você levou a minha opinião em consideração?

– Claro que sim! Por que não levaria? E, para ser sincera, era a minha primeira opção também. – Afonso riu.

– Pronto! É aqui! Chegamos! Preparada para conhecer o seu futuro lugar favorito do colégio? – Alice fez que sim com a cabeça. – Quer fazer as honras? – A Menina abriu a porta com cuidado e foi surpreendida pela presença de um piano de cauda. O instrumento estava em cima do palco do lado esquerdo. – Você sabe tocar?

– Um pouco! – Respondeu a Menina – Posso?

– Por favor!

– Quer escutar como soa a música que estou compondo no piano? – Afonso assentiu. Alice ajeitou o vestido vermelho que usava, sentou-se no banquinho e tocou os primeiros acordes da melodia. O Menino puxou um tamborete que estava ali perto e escutou o que a Menina tinha a dizer através dos sons. Depois que terminou a primeira música, Alice tocou outras, esquecendo-se um pouco do mundo ao redor.

– E você disse que só tocava um pouco! – A Menina riu. Por cima dos acordes que o piano emitia, ela comentou:

– Como meu avô é pianista, considero uma falta de respeito da minha parte dizer que toco bem.

– Foi com ele que você aprendeu a tocar? – Alice assentiu.

– Ele diz que eu aprendi a tocar piano antes mesmo de falar ou andar. – Afonso riu.

– Como não tenho um avô pianista e não entendo muito de música, posso dizer que você é muito talentosa. – Ao ouvi-lo dizer aquelas palavras tão doces, a Menina olhou o Menino nos olhos, parando de tocar por uns instantes. O silêncio se estendeu mais uma vez por tempo demais. Em determinado momento, Alice olhou para a boca de Afonso. Um pouco depois, ele fez o mesmo. – Você quer ouvir mais alguma coisa? – Perguntou a Menina, desviando o olhar para o piano.

– Só se for uma composição sua. – Alice pensou um pouco em que canção tocar e escolheu uma melodia que se chamava “Alegria”.

– Essa é para momentos felizes. Faz parte da minha trilha sonora secreta. – O Menino sorriu. A canção era bem animada e refletia bem o sentimento que dava nome a música. – Essa é para quando estou com muita raiva. Não é exatamente uma composição. É só uma confusão sonora irritada – O Menino riu. A próxima melodia tocada era para momentos de tristeza. Era a preferida da Menina, porque, segundo ela, traduzia perfeitamente os momentos de melancolia – era bastante precisa (palavras ecoadas pelo próprio Avô). Por fim, a última composição era para aquelas situações que nos dão medo, perfeita para ser trilha sonora de filmes de suspense e terror. Quando Alice finalizou o último tema, Afonso aplaudiu. Ele estava bastante impressionado!

– Tem mais alguma? – O Menino quis saber. A Menina então tocou mais algumas canções do seu repertório. Ela só parou quando lembrou que estava com o gravador do celular ligado. – Que foi?

– Eu me esqueci de desligar a gravação. – Afonso não entendeu. Alice explicou enquanto tirava o celular da bolsinha que estava pendurada no pescoço e parou a gravação. O áudio já tinha mais de 50 minutos. – Quando o Coordenador precisou sair para atender a ligação, fiquei tanto tempo sozinha que decidi testar alguns ritmos para a letra que estou compondo, aquela que você ouviu. Foi então que decidi gravar para não esquecê-los. – Ela ainda mexia no celular quando perguntou: – Você se importa se eu não apagar? Eu quero passar para o meu computador os testes que fiz. Preciso mostrar ao meu Avô.

– Claro que não! Pode guardar! Na verdade, será que você poderia compartilhar o áudio comigo? – Por essa, a Menina não esperava. Alice olhou Afonso nos olhos tentando decidir se ele falava sério ou se estava apenas brincando – Eu gostei da sua trilha sonora! – A Menina pensou um pouco antes de responder.

– Se você prometer que não mostrará para ninguém...

– Prometo!

– Me diz o seu número! – Ele falou pausadamente e depois repetiu para confirmá-lo. Em menos de um minuo, o Menino recebeu o áudio. Ele adicionou o número da Menina na lista de contatos e enviou uma mensagem de agradecimento. Em resposta, Alice reagiu àquelas palavras com uma carinha sorridente. Na foto de perfil da Menina, ela segurava um poodle branquinho. A coleirinha que ele usava trazia um nome inusitado.

– O nome do seu cachorrinho é Iogurte? – A Menina assentiu. O Menino riu. Dois segundos depois, o celular de Alice tocou.

– Alô! Oi, pai! Ainda estou no Colégio! Quero ir sim! Daqui a cinco minutos? Vou para o portão de trás, então! Beijo! Tchau! – Alice guardou o celular e se levantou. – Tenho que ir! Obrigada por me mostrar o colégio, ou melhor, uma parte dele. – O Menino sorriu.

– Obrigada por compartilhar o áudio comigo. – A Menina sorriu. – Você está em que ano?

– Primeiro ano F! E você?

– Seremos companheiros de turma, então! Até semana que vem!

– Até! – Afonso observou Alice sair do auditório. Quando ela fechou a porta atrás de si, ele voltou a olhar para a foto do perfil que ela usava e falou o seu nome em voz alta sorrindo:

– Alice.


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