Em Outubro de
2009, época em que cursava o segundo ano do ensino médio, a Menina se envolveu
em uma discussão com a Professora de Redação. A segunda avaliação fora duas
semanas antes e o tema proposto envolvia a legalidade da “Eutanásia” no Brasil.
Segundo a Professora, tirando um aluno ou outro, a maioria dos estudantes ficou
acima da média. Na verdade, dos 40 discentes, 19 ficaram com nota abaixo de
sete, nove deles recebendo zero da Professora. Lívia estava nesse último grupo.
Em um primeiro momento, a Menina se assustou com aquela palavra escrita em
vermelho com letras de forma. Nunca tirara zero em todos aqueles anos de
colégio. Na verdade, a Menina não se lembrava de sua última nota abaixo de
sete. Depois do choque inicial, Lívia decidiu reler a redação, procurando as
correções da Professora. O estranho é que não havia nenhuma anotação ao longo
do texto - nenhuma vírgula corrigida, nenhuma palavra sublinhada, nenhuma
advertência por falta de acentuação. Se não fosse pelo ZERO, visível a dois
metros de distância, seria difícil acreditar que a Professora sequer lera
aqueles quatro parágrafos que a Menina escrevera defendendo o direito de
escolha de cada um.
- Excelente! –
Comentou a professora depois que um dos alunos terminou de ler a redação em voz
alta. O próximo escolhido, assim como os três anteriores, também argumentou
contra a eutanásia. O quinto e último estudante precisou limpar as lentes dos
óculos antes de começar a dar voz as suas palavras. Ele sentava atrás de
Francisco na fileira ao lado e parecia envergonhado de ter que falar para os
colegas. Pelo título da redação, aquele garoto introvertido e que pouco falava
durante as aulas também seria mais um que não era a favor da eutanásia. Foi
nesse momento, ao perceber que os cinco melhores textos escolhidos pela
Professora – sabem-se lá quais os critérios ela utilizava – defendiam o mesmo ponto
de vista, que Lívia riu de maneira debochada, alto o suficiente para toda a
turma escutar. Se no segundo anterior, quase todos prestavam atenção ao tímido
garoto, no momento seguinte todos olhavam para a Menina de maneira surpresa,
inclusive a Professora. Quando Lívia percebeu a reação dos colegas, ela se
endireitou na cadeira e olhou para baixo, um pouco envergonhada. Não queria que
o garoto pensasse que era o “culpado”.
- Algum
problema, senhorita Oliveira? – Questionou a Professora. Lívia olhou nos olhos
daquela senhora de mais de cinquenta anos, pensando em como deveria colocar, de
maneira educada, suas suspeitas.
- Eu fui a única
a argumentar a favor da eutanásia? – Perguntou a Menina, curiosa, surpreendendo
alguns colegas ao redor. Para a maioria deles, era inadmissível a ideia de
tornar legal a eutanásia no Brasil. Não era direito do paciente optar por
aquela alternativa.
- Claro que não.
- A Menina, então, balançou a cabeça, mordendo os lábios e franzindo o cenho,
desconfiada.
- Não? Hum...
Posso fazer uma sugestão, então? – A professora assentiu. – Vamos escutar alguém
que seja a favor?! É importante ouvir os dois lados, a Senhora não concorda? –
Por aquela, a Professora não esperava.
- Claro que
concordo! – A Senhora olhou para a turma, procurando alguma desculpa antes de
responder. - Infelizmente, as cinco primeiras foram contra. Por isso, não
escutamos nenhuma redação a favor...
- Sei... –
Comentou a Menina, cada vez mais certa de que aquela avaliação não era sobre
eutanásia, e sim sobre os motivos pelos quais essa prática não deve jamais ser
permitida no Brasil.
- Enfim... – A
Professora parecia desconfortável demais com aquela situação. - Podemos
continuar? Onde estávamos mesmo? – A resposta veio do tímido garoto, que explicou
que era a vez de ele ler a redação. Não satisfeita com a desculpa dada pela
Professora, a Menina levantou a mão. – Depois, Oliveira! Querido, por favor! –
Pediu a Senhora.
- Quais os
critérios dessa avaliação? – Interrompeu a Menina.
- Oliveira, por
favor! – Insistiu a Professora.
- Quais os
critérios dessa avaliação? – Repetiu a Menina, falando mais alto.
- A Senhorita
sabe quais são. O colégio adota os critérios estabelecidos pelo ENEM. Inclusive,
se você prestar atenção, está escrito na primeira folha da prova. – Lívia
voltou à primeira página e leu em voz alta:
- Domínio da norma padrão. Compreensão da proposta
de redação. Os verbos que
comandam a avaliação de redação do ENEM são: relacionar,
selecionar, organizar e interpretar. Conhecimento da estrutura do texto
argumentativo. Elaboração de propostas de intervenção para o problema
abordado*.
- Exatamente... Continue! – O tímido garoto voltou a ler
sem saber se realmente deveria. Lívia olhou mais uma vez para a prova que tinha
em mãos e não encontrou uma única observação escrita em vermelho.
- Então, como posso ter tirado zero se não há nenhuma
correção na minha prova? A Senhora ao menos leu o que eu escrevi? – A
Professora olhou nos olhos da Menina e respondeu de maneira controlada:
- A Senhorita acha que eu daria zero a um aluno se ele
não merecesse?
- Não sei. – Respondeu a Menina – Com licença... Posso
ver a sua prova? – O tímido garoto assentiu, entregando a avaliação para a Menina.
Como ela suspeitava, o texto estava marcado por correções e observações em
vermelho, feitas, obviamente, pela Professora. – A Senhora tem certeza que
corrigiu a minha prova de acordo com os critérios do ENEM? – Tentando controlar
a raiva, a Professora respirou fundo e fechou as mãos em punho antes de
responder.
- O que a Senhorita está querendo insinuar? – Dessa vez,
o tom de voz da Professora escorregou.
- Que a Senhora utilizou convicções pessoais para
corrigir a redação. Como é possível nenhuma redação a favor da “eutanásia” ser
escolhida para leitura?
- Como falei agora a pouco, eu escolhi as cinco melhores
da turma.
- Mesmo que as cinco melhores fossem contra, a Senhora
tinha o dever de selecionar alguma que fosse a favor...
- Dever? Claro que não. Não estamos debatendo opiniões,
estamos avaliando questões de escrita...
- Então, a Senhora admite que não ter corrigido o que eu
escrevi?
- Que absurdo! É claro que corrigi!
- Sem fazer uma única anotação ao longo do texto?
- Você acha mesmo que eu não saberia separar opinião
pessoal de opinião profissional? – Mais uma vez, a Menina riu de maneira
debochada, fazendo a Professora levantar da cadeira e falar alguns tons acima,
muito fora da curva: – Queridinha, eu tenho anos de docência! A-N-O-S – Dessa vez,
foi a vez da Menina ficar em pé:
- Queridinha é a senhora sua mãe... – Respondeu Lívia sem
controlar o tom da voz, perdendo completamente a razão. Os alunos que dormiam
ou estavam entretidos com o celular pararam o que estavam fazendo e voltaram a
atenção para a discussão entre a Menina e a Professora. Francisco observava a
confusão, preocupado. Ele sabia que, no final das contas, sobraria para Lívia,
mesmo que as reinvindicações que ela fazia fossem verdadeiras. E eram.
- Chega! – Gritou a Professora, andando em direção a saída.
– Ponha-se daqui para fora, Senhorita Oliveira. – A Senhora abriu a porta e
esperou. – Espere na coordenação. No final das aulas, passarei por lá – Lívia
empurrou a cadeira, fazendo barulho, e caminhou até a porta com a prova na mão.
Quando ela pôs os dois pés para fora da sala, a Professora fechou a porta com
toda força que tinha. Não seria absurdo dizer que o colégio inteiro escutara.
A coordenação do ensino médio ficava
a três salas de distância, no final do corredor, à direita. Era possível
observar os estudantes que esperavam ser atendidos através do vidro que
separava a sala de espera do corredor. Na verdade, como as cadeiras ficavam de
costas para o vidro e por conta da altura da janela, a visão de quem estava de
fora se restringia à parte de trás da cabeça dos alunos. Por isso, ao abrir a
porta, a Menina se surpreendeu – surpreender não é a palavra certa para
descrever a situação, mas na falta de outra melhor, surpreender “dá para o gasto”
– com quem estava na sala: o Melhor Amigo e o “Mau Elemento” – como era
conhecido pelos colegas de turma. Os dois colocavam gelo no rosto – sinal de
quem, mais uma vez, tinha deixado a raiva ser transformada em socos – enquanto
esperavam o coordenador responsável. Lívia riu ou vê-los ali. Era a terceira
vez no ano que os três se encontravam naquela minúscula sala em situação
parecida.
- De novo? –
Perguntou a Menina aos colegas. – Vocês não têm nada melhor para fazer não? –
Em resposta, os dois também riram, sentindo a dor dos machucados. Como o Melhor
Amigo e o “Mau Elemento” estavam, cada um, em uma ponta, Lívia sentou no meio,
duas cadeiras de distância tanto de um quanto de outro.
- Foi expulsa
por quem desta vez? – Perguntou o Melhor Amigo.
- Pela
Professora de Redação. – Respondeu Lívia, suspirando uma vez antes de continuar
– Perdi as estribeiras em uma discussão sobre critérios de correção da última
prova...
- Ela já
corrigiu? – A Menina assentiu. – Mais um dez para sua coleção? – Brincou o
Melhor Amigo.
- Meu primeiro
zero. – O Melhor Amigo tirou o gelo do rosto, o “Mau Elemento” fez o mesmo –
mas no caso dele, o gelo cobria a boca. Os dois esperavam que a Menina
explicasse o que tinha acontecido ou que dissesse que estava de brincadeira.
Como não houve resposta, o Melhor Amigo pegou o papel que Lívia segurava. Não
era piada. Ela realmente tinha tirado zero. Ele, então, passou a prova para o
“Mau Elemento”. Ao contrário do Melhor Amigo, o “Garoto Problema” da turma leu
a redação da amiga.
- Acho que vou
tirar zero também. – Comentou o “Mau Elemento”
- Você também foi
a favor da eutanásia? – Perguntou Lívia. Ele assentiu. – Bem-vindo ao grupo. –
O Garoto Problema devolveu a redação para Lívia e voltou a ficar em silêncio,
como de costume.
- A Professora
zerou a prova de todo mundo que escreveu a favor? – Perguntou o Melhor Amigo,
entendendo o que a Menina insinuava.
- Provavelmente.
Você entenderia se estivesse na sala... Aliás, vocês brigaram mais uma vez?
- Francisco tem
razão. Você não deveria andar com maus elementos. – O Garoto Problema riu em
deboche. A Menina revirou os olhos. Depois disso, a conversa morreu. Os três
esperaram em silêncio pelo Coordenador do Ensino Médio. Quando ele apareceu,
estava no início do último tempo.
- Mu... – Chamou
o Coordenador. Antes que terminasse a frase, no entanto, o homem de meia-idade
parou a meio caminho da sala e encontrou Lívia sentada junto aos colegas de
turma. Ele piscou duas vezes para conferir se a Menina estava realmente ali. Na
esperança de que aquilo fosse ilusão, o Coordenador saiu para o corredor e
voltou a abrir a porta alguns segundos depois. Ele não tinha enlouquecido.
- De novo,
Lívia? – O Coordenador abaixou a cabeça, tirou os óculos e esfregou os olhos
com força. – O que foi desta vez? – A Menina, então, entregou a prova e pediu
que ele lesse a redação que escrevera. – Por q...? Zero? – Como Lívia era
conhecida por escrever bem, o Coordenador parou por um instante para ler o que
tinha escrito naquelas trinta linhas. Assim que terminou, ele apertou os olhos,
franziu o cenho e inclinou a cabeça, sinal de quem não entendia o Zero recebido
pela Menina. – O que aconteceu? – Lívia explicou a situação em detalhes, desde
sua suspeita sobre os critérios de correção da avaliação até o momento em que
perdera a razão. Depois de escutar todo o relato da Menina, o Coordenador se
dirigiu aos outros dois estudantes: – Vocês podem voltar para a sala de aula.
Amanhã cheguem cedo para o trabalho voluntário. São duas semanas completas. D-U-A-S.
Entenderam? – Sem nada a acrescentar, o Melhor Amigo da Menina e o Mau Elemento
foram assistir à última aula, ou melhor, assistir ao que restava dela – Você.
Espere aqui. Volto num instante. – O Coordenador, então, foi à sala onde a
Professora de Redação estava e pediu que ela fosse à coordenação assim que o
último período terminasse. Em seguida, ele visitou a sala de aula da Menina e recolheu
as provas de todos os alunos. Lívia e mais oito estudantes – todos a favor da
eutanásia – receberam Zero. Mais do que isso, todas as provas estavam “limpas”,
não havia um comentário ou um erro corrigido ao longo da toda a página. Por
outro lado, a menor nota do grupo “contra” foi cinco, o que, segundo o
Coordenador, não era uma nota injusta. Cinco minutos depois, aquele dia de aula
tinha finalmente chegado ao fim para a maioria dos alunos. Em seguida,
Francisco apareceu na coordenação com as bolsas de Lívia (sim, no plural)
penduradas no ombro.
- Entre,
Francisco! – Chamou o Coordenador. Ele perguntou ao Namorado da Menina o que
acontecera na sala de aula. Depois de escutar o Menino, o Coordenador pediu que
ele esperasse por Lívia lá fora, na antessala. Francisco assentiu com a cabeça
e se despediu da Menina com uma piscadela, antes de sair e ocupar uma daquelas
sete cadeiras, agora, vazias. A Professora chegou no minuto seguinte.
- Boa tarde, Siqueira-Queiroz!
– Cumprimentou ao passar por Francisco. Ele assentiu em resposta.
- Sente-se. –
Pediu o Coordenador. – Lívia e Francisco me contaram o que aconteceu na hora da
aula. Como toda história tem mais de um lado, gostaria de saber a sua versão
dos fatos. – A narrativa da Educadora era semelhante à contada pelos dois
estudantes, diferia apenas no tom utilizado para falar “queridinha”. A Menina
precisou respirar muito fundo para não perder o controle. O Coordenador mais
uma vez tirou os óculos e esfregou bem os olhos, sabendo a dor de cabeça que
teria por conta daquela discussão. Ele estava tão imerso em pensamentos
infelizes que não escutou quando a Professora perguntou qual seria a punição de
Lívia. Foi necessário chamar a sua atenção dando dois toques na mesa. – Perdão,
o que a Senhora disse?
- Quero saber a
castigo que será aplicado. – O Coordenador colocou os óculos na mesa e explicou
à Professora que primeiro ela teria que esclarecer a questão da nota dos
alunos.
- Como assim
esclarecer? – Questionou a Professora, furiosa. O Coordenador, então, pegou as
provas dos nove estudantes que argumentaram a favor da eutanásia e colocou
diante dela. – O que essas provas estão fazendo aqui? Eu... – Assim que caiu a
ficha, a Professora levantou da cadeira e, tentando manter a voz baixa,
perguntou: – O Senhor não acha que eu corrigi as avaliações considerando
opiniões pessoas, acha? Tenho mais de trinta anos de carreira. – “Grande
coisa”, pensou a Menina.
- Como
professora de gramática.
- Sim, como
professora de gramática. Uma das melhores, inclusive.
- Ninguém está
questionando sua competência. Eu só quero entender por que essas nove redações
não têm nenhum comentário, nenhuma correção. Eu li a maioria e nenhuma delas merece
essa nota tão baixa.
- O senhor não é
professor de redação. Pelo menos, não que eu saiba... – Em resposta, Lívia
revirou os olhos. O Coordenador, por sua vez, esfregou os olhos mais uma vez,
visivelmente cansado. O dia seria longo.
- Não sou... – O
tom daquele homem de meia idade era tão sem vida que não precisava ser
especialista em comportamento para saber o que se passava em seus pensamentos. –
Por favor, sente-se! Vamos tentar manter a calma. – A Professora não sentou.
- Como posso
manter a calma depois de ouvir acusações tão absurdas?
- Não são
absurdas. – Afirmou Lívia.
- Lívia, por
f...
- Ou a Senhora
não corrigiu nossas provas ou não aceitou nossa opinião.
- Eu não faria
isso. – Assegurou a Professora. – Deixe-me ver as avaliações. – Cansada de
ficar em pé, a Docente finalmente voltou a sentar. Ela leu redação por redação
para no final contar em alto e bom som a mentira mais absurda que Lívia já
escutara em toda a sua vida. A narrativa foi tão ridícula que não merece chegar
aos ouvidos daqueles que não estavam presentes na coordenação naquele devido momento.
Nem o Coordenador escondeu a incredulidade diante daquela situação. Suas
sobrancelhas elevadas e seus olhos bem abertos demonstravam claramente a sua
opinião: surreal. O esforço de Lívia em manter a calma estava sendo dissipado de
pouquinho em pouquinho:
- A Senhora não
quer que a gente acredite nessa história, não é? – Questionou a Menina depois
de roubar quase todo o oxigênio ali presente. A Professora ignorou a pergunta,
dirigindo-se, em seguida, ao Coordenador:
- Agora que tudo
já está esclarecido, faço questão de corrigir prova por prova. Assim, os alunos
não se sentirão...
- Eu não aceito.
- A Senhorita
não tem que aceitar nada. As coisas são como são. – Concluiu a Professora. – O
Senhor teria uma caneta vermelha para me emprestar?
- O Senhor não
vai fazer nada? Vai acreditar em uma história que não faz o menor sentido? – Pelo
sangue que tinha nos olhos, era óbvio que a compostura da Menina não duraria
muito mais tempo. Suas mãos tremiam descontroladamente.
- Eu exijo
respeito!
- Chega! As
duas! Lívia, você tem todo direito de pedir revisão de prova. A sua e a redação
dos outros oito alunos serão corrigidas por dois professores de fora.
- O quê? O
Senhor prefere acreditar em suposições de uma adolescente de 16 anos?
- Não é questão
de acreditar. São normas do colégio. A Senhora sabe disso. Está no regulamento...
- O regulamento!
É isso! – A Professora estalou os dedos, lembrando-se de um trecho do livrinho
de normas do Colégio – Também está no regulamento que se o professor se sentir lesado,
ele/ela pode exigir um pedido de desculpas formal ou a expulsão do estudante.
- Expulsão? –
Perguntaram o Coordenador e a Menina, em uníssono. – Não é para tanto,
Professora. – Afirmou o já exausto Coordenador.
- A Senhora
enlouqueceu? – E lá se foi a compostura que a Menina mantivera firmemente até
aquele momento.
- Lívia!
- Está vendo,
Coordenador, como o Senhor não pode leva-la a sério? Menina mal criada.
- Professora,
por favor...
- Não foi
suficiente ofender minha mãe e me difamar em sala de aula, a Senhorita ainda me
chama de maluca?!
- Difamar? Eu
não tenho culpa se Senhora não tem a capacidade de ser profissional ao corrigir
uma prova.
- Lívia, por
favor...
- O quê? Estou
errada? O Senhor ouviu a mesma história que eu!
- Essa não é a
questão...
- Não? Então,
qual é a questão?
- A Senhorita
ofendeu minha mãe na frente de todos os alunos.
- Sim e, por
isso, peço desculpa. Foi desrespeitoso.
- Não é
suficiente.
- Faço questão
de pedir desculpa diante de toda turma.
- Ótimo! –
Comentou o Coordenador.
- Não, não é
suficiente. A Senhorita tem que se desculpar por me acusar sem embasamento
algum...
- Sem
embasamento?
- Chega! –
Gritou o Coordenador. – Ninguém vai ser expulso. Lívia já concordou em pedir
desculpa em público... – A Professora não deixou o Responsável pelo Ensino Médio
terminar. Ela levantou-se da cadeira e, antes de sair, disse:
- Semana que vem
nos encontramos no Conselho. – BLAM.
O som da porta foi tão alto que assustou quem estava por perto. O Coordenador
fechou os olhos e por muitos segundos permaneceu assim. Lívia encarava a porta
com lágrimas nos olhos, não de tristeza, mas de raiva. Do outro lado da porta,
também em pé, Francisco fazia o mesmo – no entanto, as lágrimas não ameaçavam
transbordar. Ele não sabia se deveria entrar ou se se permanecer na antessala
seria melhor. O tempo passou devagar – quase parando – enquanto nenhum dos três
tomava iniciativa. Foram mais de cinco minutos em um silêncio desconfortável.
Quando o Coordenador voltou a abrir os olhos, ele tirou uma caixa de remédio da
gaveta e pôs em cima da mesa. Depois de procurar por alguns segundos, o
Coordenador encontrou o último comprimido para dor de cabeça da cartela. Ele
derramou o resto de água da garrafa em sua caneca customizada e tomou o remédio
em um único gole.
- Vocês ainda
vão me matar do coração. – O Responsável pelo Ensino Médio esfregou os olhos
mais uma vez, disposto a mandar o cansaço embora. Ele colocou os óculos,
abandonados em cima da mesa há muito tempo, e pediu que Lívia se sentasse. –
Seu pai pode vir aqui agora à tarde? Ou ele ainda tem aula para dar na
graduação? – O Pai da Menina era Professor do Departamento de Matemática na
Universidade Federal de Serrapilheira. – Sei que sua mãe deve estar em horário
de pico no restaurante... – Lívia pegou o celular em uma das bolsas que
Francisco trouxera da sala de aula e ligou para o Pai. O Coordenador pediu para
falar com ele ao telefone e explicou a situação resumidamente. Do outro lado da
linha, o Pai da Menina avisou que sairia em dez minutos, mas que, por conta do
trânsito que ocupava as ruas na hora do almoço, não prometia chegar ao colégio
em menos de 30 minutos. Para tranquilizá-lo, o Coordenador respondeu que esperaria
o tempo que fosse necessário para conversar com Pai e Filha. Sua tarde de
quarta-feira estava sempre livre. Ao desligar, ele devolveu o celular para
Lívia e levou a estudante e Francisco para almoçarem na lanchonete do Colégio.
Os três comeram em silêncio – ninguém tinha ânimo para começar qualquer tipo de
conversa.
Na semana seguinte, o Conselho se
reuniu para escutar a versão da história dos envolvidos na discussão – a Menina
e a Professora de Redação – e convocou mais dois alunos que estavam na sala no
momento do bate boca – o Menino e o Tímido Garoto. O Mau Elemento também
compareceu à sessão, o único dos outros oito estudantes que pediu
esclarecimento quanto à nota da avaliação. Como era de se esperar, a Docente não
assumiu o erro, ela preferiu contar aquela mentira absurda sobre a correção das
redações para o Conselho. O Coordenador foi o último a ser chamado para prestar
depoimento. Ele revelou o comparativo de notas dos alunos para os presentes,
chamando atenção para discrepância entre a média obtida pela soma das notas
dadas pelos dois professores de fora em comparação com o valor atribuído pela
professora da casa. A nota de Lívia subiu de Zero para 9,2; enquanto a do Mau
Elemento cravou em 8,0.
Infelizmente, apesar do esforço do Coordenador e das testemunhas, o
Conselho decidiu a favor da Professora de Redação. Segundo o Presidente da
banca, não era possível comprovar as suposições feitas pela Menina sobre os
critérios de correção, assim como era impossível demonstrar que a Docente
estava mentindo. Na verdade, o Presidente fez questão de enfatizar que não
duvidava, nem por um instante, da Professora de Redação. Ele não perdeu a
oportunidade de enaltecer as qualidades da Colega de trabalho. Foram tantos
elogios vazios que, a partir de determinado momento, nenhum membro da banca,
nenhum dos alunos prestava atenção. Lívia e Francisco se entreolharam e, em
silêncio, compartilharam a frustração que aquela “audiência” provocava,
esperando apenas a decisão final ser lida em voz alta.
-... Portanto, a
Senhorita Oliveira tem obrigação de: 1) pedir desculpas por desrespeitar a mãe
da Professora, 2) por ofender a própria professora e 3) por fazer suposições
durante a aula diante de toda a turma, assim como 4) admitir estar errada sobre
os critérios de avaliação utilizados para correção da prova.
- O quê? Admitir
estar errada? O Senhor mesmo disse que não tem como comprovar se é verdade ou
não... - Lívia sabia que precisava pedir desculpas. Por mais que não tenha sido
intenção da Menina, fazer insinuações graves diante de toda turma ofendia sim a
imagem que a Professora transmitia aos alunos. Ao invés de expor a Educadora daquela
maneira, falar diretamente com ela ao final da aula teria sido muito mais
apropriado. No entanto, aceitar a história da correção das provas era inadmissível,
principalmente porque a narrativa não fazia o menor sentido.
- Justamente por
isso. Como não é possível comprovar qual dos dois lados está certo, a única
alternativa que nos resta é acreditar na palavra da Professora em questão...
- O que acontece
se eu não admitir? Serei expulsa? – O Presidente do Conselho assentiu. – A
Senhorita tem até amanhã para decidir. Espero que faça a escolha certa. – Os
olhos da Menina se encheram de lágrimas, em uma mistura de raiva, decepção e
tristeza.
A aula de redação começava depois do
intervalo. A Menina estava sentada em frente ao mastro do Colégio, onde a
bandeira da pequena cidade ficava nos dias comemorativos, quando os amigos
chegaram para fazê-la companhia. Ela comia um prato de banana com leite moça e
farinha láctea, que comprara na cantina, enquanto esperava o sinal avisar a
hora que deveria ir para sala de aula.
- Cadê
Francisco? – Perguntou a Melhor Amiga.
- “Amor, vou ali
e volto em um instante”. – Respondeu Lívia, imitando o Namorado. Os amigos
sorriram tristemente, sabendo que, dependendo da escolha da Menina, aquele
seria um de seus últimos momentos no Colégio. – Acho que ele calculou mal o
tempo desse instante. Faz mais de quinze minutos. – Lívia suspirou, chateada
por não saber onde Francisco estava. “Dim! drim!”, avisou o sinal. Era hora de encarar
os colegas de turma, os amigos, o namorado, o Coordenador, o Presidente do
Conselho e a Professora de Redação. Todos de uma vez só. A sala do segundo ano
do ensino médio ficava no térreo, de frente para o Pátio. Menos de 50 passos separava
Lívia de seu destino. O que a Menina faria? Ela admitiria que estava errada quanto
à correção das provas, ou apenas pediria desculpa pelos erros que cometera?
Talvez nem ela soubesse a escolha que faria. Mesmo depois de conversar com os
pais durante toda a tarde de ontem e de passar a madrugada debatendo a questão
com Francisco, Lívia não sabia qual era a escolha certa a fazer naquele
momento, principalmente, por faltar menos de dois meses para o fim do ano letivo
e por estar prestes a embarcar no ano decisivo, o terceiro ano, o último ano no
Colégio.
Antes de dar os últimos dez
passos em direção à sala de aula, a Menina procurou pelo Menino uma última vez
– Ele não estava em lugar algum...
- Lívia! – Gritou Francisco.
Ao olhar para trás e finalmente encontra-lo a poucos metros de distância, a
Menina suspirou aliviada. Seria menos difícil encarar aquele momento se o
Menino estivesse ao seu lado, porque receber energia boa de pessoas queridas
faz muita diferença. Por isso, por acreditar na força das energias positivas, a
Menina sorriu. Francisco estava ensopado de suor e carregava um guarda-chuva na
mão esquerda. Lívia olhou para cima e observou o azul do céu contrastar com o
branco das poucas nuvens que por ali passavam. Não parecia que hoje seria de chuva.
Na verdade, estava tão quente que tomar banho debaixo daquele céu seria muito
bem-vindo. “Que estranho”, pensou a Menina ao perceber que aquele objeto estava
no cenário errado. No entanto, antes que pudesse questionar, Francisco
perguntou: – Para onde você quer ir? Eu tenho um guarda-chuva! – Ao escutar
aquelas palavras, Lívia sorriu. O Menino imitava a cena do filme “Pela chuva”,
em que o Avô dizia para Neta que, mesmo se estivesse chovendo, ela poderia
procurar dentro de si outro caminho para seguir. Nas palavras do Personagem do longa-metragem:
“Não é porque esse sonho se tornou velho e acabou na padaria que você não pode
ir à livraria”.
- Sempre, sempre em frente. – Respondeu
a Menina sorrindo.
Ao
final da última aula, quando só restavam Lívia e Francisco, a Professora de
Redação apareceu na sala para falar com a ex-aluna:
- Não seria muito mais fácil admitir seu
erro?
- Meu erro? – Lívia não conseguia
acreditar que a Professora continuaria insistindo naquela história absurda
sobre as provas. – Sim, seria, se o erro fosse meu, mas não fui eu quem
inventou um conto surreal para me fazer de vítima.
- Você me
desrespeitou como professora. – Salientou a Educadora.
- E a senhora me
desrespeitou como ser humano. – Pela primeira vez as palavras da Menina
pareceram pesadas demais para a Professora sustentá-las. – Não apenas tirou o meu
direito de expressão, como também não foi mulher suficiente para admitir um
erro. Conte quantas vezes quiser a história da correção das provas, ninguém
naquela sala acreditou. – Lívia se referia ao auditório, onde o Conselho se
reuniu ontem à tarde para debater o embate aluna/professora. – Do que adianta
passar em um concurso público para ensinar em uma escola de prestígio quando
não se tem o básico? Discernimento, empatia, respeito ao próximo, etc. Ninguém
respeita ninguém a base de título. Respeito
se alcança com caráter, com esforço, e não com ameaça velada, com ego inflado. Aliás,
ninguém do conselho respeita a senhora. Eles têm medo de você. Todos eles,
porque os professores sabem que a senhora tem NOME no meio acadêmico, suficiente
para queimá-los... Mas não se engane! Todo o tempo que o Presidente do Conselho
gastou enaltecendo suas qualidades não passou de tempo perdido em elogios
vazios. – A Professora balbuciou algumas palavras, mas nunca chegou realmente a
dizê-las. Pela primeira vez em muito tempo, a Educadora não parecia saber
palavras o suficiente para rebater o que a ex-estudante dizia. – Eu espero
nunca, jamais, em hipótese algum ser um ser humano tão deprimente quanto à
senhora. – Lívia pretendia terminar por ali, mas lembrou-se de seus avós e de
que idade não é desculpa, não é armadura, não é blindagem intransponível para o
aprendizado. - Eu espero,
sinceramente, que a senhora saiba que ninguém deixa de aprender por alcançar
determinada idade. Se meus avós se arrependeram e continuam aprendendo todo e
cada dia, por que a senhora, que é muito mais nova, não pode fazer o mesmo?
No final da noite, a Menina
e o Menino conversavam no quarto dela – Francisco abraçava Lívia com força. Ela
finalmente parara de chorar. Doía sair do colégio em que passou a maior parte
da vida. Desde os dois anos, a Menina frequentava a mesma escola. Ela conhecia
aquele lugar com a palma da mão. Era sua segunda casa. Mas, infelizmente, as
coisas mudam e, por conta disso, às vezes, é preciso sair de casa. Deixar para
trás e seguir em frente.
– No que você
está pensando? – Perguntou Lívia.
– Sinceramente? –
A Menina se afastou do abraço sem desfazê-lo e olhou nos olhos do Menino. –
Você defende a eutanásia por conta do que aconteceu com a Vovó Berenice? –
Francisco sabia que aquele era um assunto difícil para Lívia, por isso decidiu prepara-la
com o “sinceramente”. A Avó materna da Menina foi atingida por um carro enquanto
as duas lanchavam em uma cafeteria no final de 2007. Foi desesperador. Lívia
viu a Avó perder muito sangue e a sensação de não poder fazer nada foi
extremamente dolorosa. Berenice passou por uma cirurgia, mas não se recuperou.
Ficou meses em coma até partir no início de 2008.
– Sim! Permanecer é bom para quem continua construindo
a própria história, não para quem deixou de escrevê-la. – A Menina fez uma
pausa para imaginar a Avó cheia de vida em detalhes. O Menino esperou
pacientemente. – Vovó Berenice estava há meses na mesma página d próprio livro,
sem acrescentar uma linha sequer a sua história. – Mais uma pausa. – Mesmo que
as máquinas sinalizassem que ela continuava viva, ela já não vivia, de verdade,
em seu sentido ‘verdadeiro’, desde o acidente.
Referências bibliográficas
*https://vestibular.mundoeducacao.bol.uol.com.br/enem/redacao-no-enem-criterios-avaliacao.htm
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