O mês de Julho era sinônimo de
férias. Alguns alunos viajavam, outros ficavam em casa e tinha ainda aqueles
que participavam de programas voluntários. Naquele ano – ano de vestibular para
Lívia e Francisco – os dois decidiram, junto com a família e os amigos, fazer
parte do terceiro grupo de estudantes. Parecia a coisa certa a se fazer. Na
segunda semana daquele mês, Francisco, o Irmão Mais Velho, o Cunhado e o Melhor
Amigo do Menino ajudavam na reforma do colégio quando uma explosão interrompeu
a obra. Os voluntários que estavam próximos ao local foram arremessados a
alguns metros de distância. O Menino foi jogado contra parede, atingindo o chão
ainda consciente, enquanto o melhor amigo foi lançado contra uma porta de vidro
que dava acesso ao corredor. Os irmãos de Lívia e Francisco estavam do lado de
fora do colégio, descarregando os materiais que chegavam, quando tudo
aconteceu. Do outro lado da cidade, a Menina, a melhor amiga e a irmã – não tão
– mais nova do Menino ajudavam na creche da cidade – ora lendo para as crianças
mais velhas, ora brincando no parquinho com as mais novas. As três descansavam
nos balanços quando o celular da Menina tocou. A voz do outro lado estava
desesperada. Era difícil entender o que a Mãe do Menino falava. Quando suas
palavras tornaram-se finalmente inteligíveis, as mãos de Lívia ficaram descontroladamente
trêmulas. Tão trêmulas que, em determinado momento, segurar o celular parecia
uma tarefa impossível. Por isso, a melhor amiga alcançou o telefone da Menina
antes que ele caísse no chão. Quando ouviu o que a voz dizia, a melhor amiga
olhou para a irmã de Francisco e antes de explicar o que acontecera, ela se
despediu da sogra e finalizou a ligação.
- O que
aconteceu? – Perguntou a irmã do Menino, assustada com a expressão facial que
cada uma das amigas tinha no rosto.
- Houve uma
explosão no colégio – Explicou a melhor amiga da Menina com a voz trêmula. - Na
área da reforma. Pelo o que eu pude entender, ainda não dá para saber o tamanho
do estrago ou o número de vítimas – A voz da melhor amiga falhou ao falar a
última palavra, pensando como estaria o namorado – o irmão mais velho de
Francisco – e os amigos.
- O-o que? –
Gaguejou a irmã de Francisco. – Voc... – Ela balbuciava, como se quisesse fazer
mais perguntas, mas nenhuma palavra se formava. Foram necessários alguns
minutos para que as três saíssem do estado de choque. Com a ajuda da diretora
da creche, o trio foi ao hospital procurar por notícias da família e dos
amigos. Antes, entretanto, elas passaram rapidamente pelo colégio, onde foram
informadas que alguns estudantes já tinham sido socorridos pelo corpo de
bombeiros e estavam a caminho do hospital. O rádio avisava que 25 pessoas
participavam da obra, restando sete adolescentes, entre 17 e 21 anos, ainda
desaparecidos. A notícia boa, segundo o locutor, é que não havia fatalidades.
Na verdade, alguns estavam fora da área atingida quando a explosão aconteceu.
Chegar ao hospital foi uma tarefa
difícil. O engarrafamento transformou um trecho de 20 minutos em uma espera
angustiante de uma hora e meia. Nem os pais dela, nem os de Francisco tentaram
fazer contato novamente e ficar sem notícias deixava tudo ainda pior. A Menina
ainda tremia, suas mãos estavam geladas e seu coração batia fortemente contra o
peito. Era difícil respirar em momentos como aquele.
- CARAMBA! –
Gritou a diretora da creche. – APRENDE A DIRIGIR, SEU I******! Ninguém mais
dirige como antigamente – A diretora falava mais consigo mesma do que com as
estudantes. Todas elas pareciam imersas em pensamentos profundos – inacessíveis
naquele momento. – Pronto, meninas! Finalmente chegamos. – Anunciou à diretora,
visivelmente estressada, depois de mais de 20 minutos procurando por uma vaga.
– Vamos ao hall! Talvez o caos ainda não tenha se instalado por lá. –
Infelizmente, a situação na entrada do hospital era ainda pior. O hall estava
cheio de repórteres das poucas emissoras de TV que a cidade abrigava e de
familiares desesperados a procura de alguém. A segurança foi chamada para
conter a multidão e os repórteres, câmeras, etc. foram conduzidos para o lado
de fora. Apenas familiares puderam permanecer na sala de espera, onde a espera
parecia durar mais do que o necessário. Ao procurar algum rosto conhecido
naquele espaço lotado de visitantes e não encontrar, a Menina sentiu a visão
embaçar e a inconsciência dominá-la por alguns segundos. Percebendo que a
estudante não passava bem, alguém desconhecido pediu que ela sentasse em seu
lugar. Enquanto isso, a diretora da creche foi atrás do Marido, um oncologista
renomado na região, a procura de mais informações. Mais do que isso, a procura
de informações úteis. Outras duas cadeiras foram cedidas a melhor amiga e a
irmã mais nova do Menino. Quinze minutos se passaram até a diretora voltar com
o marido. Ele segurava um papel cheio de nomes, alguns deles estavam em azul,
outros em vermelho. O azul - informou o Marido da Diretora - indicava aquelas
pessoas que não foram atingidas pela explosão; o vermelho dizia quem estava
próximo à explosão e precisara de atendimento médico.
- Quem vocês
procuram? – Perguntou o Oncologista. As três ficaram prontamente de pé, falando
ao mesmo tempo. O Médico, então, pediu que apenas uma delas falasse. Sem
hesitar, a Irmã de Francisco se prontificou a lista-los. Depois de escutar os
nomes, o Marido da Diretora passou os olhos pela folha de papel. O primeiro
encontrado foi o nome do irmão mais velho da Menina. – Ele não foi atingido.
Estava fora do colégio... – O Oncologista franziu o cenho, tentando entender o
que a palavra (escrita à mão) dizia - No estacionamento – Poucos segundos
depois, achou o segundo nome, o irmão do Menino. – Também estava no
estacionamento. Também não foi atingido.
- Você sabe
dizer onde eles estão? – Perguntou a Diretora antes que o Marido pudesse
procurar o terceiro nome.
- Eles estão na
emergência por conta do susto. – Ao observar a mudança de expressão das três,
ele logo tentou tranquiliza-las – Não precisam se preocupar. Daqui a pouco
devem vir para cá. – Explicou o Médico. – Os responsáveis já foram localizados
e estão a caminho. – O Oncologista fez uma pequena pausa, tentando organizar as
informações que tinha anotado mentalmente. – Pelo o que eu entendi, eles estão
voltando do interior. – Era verdade. Tanto os pais de Lívia, quanto os pais de
Francisco viajaram na noite anterior para o interior, a fim de curtir um
festival de música que a cidadezinha sediava.
O Médico voltou a procurar os outros
dois nomes que faltavam. O Melhor Amigo de Francisco estava em uma cirurgia de
emergência. Segundo o Oncologista era um dos casos mais graves até então. Uma
lágrima escapou pelos olhos da Menina, a expressão de medo ficando visível. A
melhor amiga e a irmã do Menino também deixaram as lágrimas transbordarem, a
preocupação ficando visível aos olhos dos outros. Elas fizeram algumas
perguntas sobre o melhor amigo de Francisco, mas o Oncologista não soube
responder a maioria delas. Quando houvesse alguma novidade, ele prometeu que
avisaria imediatamente.
O nome de Francisco foi o último a ser encontrado. Estava em vermelho na
lista. O medo que a Menina sentia, transformou-se em terror. Francisco tinha
fraturado duas costelas e quebrado a perna esquerda. Alguns machucados cobriam
seu rosto e seus braços.
- Onde ele está
agora? – Perguntou Lívia, a tremedeira na voz deixando as palavras quase
ininteligíveis.
- Os médicos
estão com ele neste exato momento. – As mãos e as pernas de Lívia tremiam tanto
que o Oncologista pediu que ela se sentasse. – Você pode trazer um copo de água
com açúcar, por favor? – Pediu o Marido da diretora a enfermeira que passava.
Ela assentiu com a cabeça e entrou no que parecia ser uma área restrita,
trazendo água com açúcar para o trio.
- Obrigada! –
Disse a Melhor Amiga da Menina. A enfermeira sorriu e foi falar com outras
pessoas que por ali estavam.
- Ele chegou
consciente? – Perguntou a Menina. O Médico checou a lista e assentiu.
- Preciso subir
agora. – Falou o Oncologista, depois de olhar o relógio. - Ainda tenho alguns
pacientes para atender. – Ele deu um beijo na esposa e se despediu. – Nos
falamos mais tarde? – Ela assentiu. – Assim que receber qualquer informação, eu
repasso para vocês. – Assegurou o Médico. Ele chamou o elevador e subiu para o
consultório que ficava no terceiro andar.
- Vamos almoçar?
– Sugeriu a Diretora visivelmente cansada. Já passava das três da tarde, cinco
horas depois desde que souberam do acidente. Antes que alguém pudesse concordar,
entretanto, a voz do irmão mais velho de Lívia ecoou pelo hall do hospital. A
Menina se levantou, procurando o irmão naquele amontoado de gente. Ele estava
acompanhado do irmão mais velho de Francisco e, como o Oncologista dissera, não
estavam machucados, apesar de parecerem emocionalmente exaustos. A Menina
correu para abraça-lo, enquanto a Irmã de Francisco e a melhor amiga de Lívia
fizeram o mesmo com o Irmão Mais Velho do Menino. Foi um abraço demorado,
daqueles que gritam tudo o que as palavras não poderiam alcançar naquele
momento.
O grupo – agora com mais dois integrantes – foi para cafeteria comer qualquer
coisa. “É importante não pular refeições, mesmo em situações difíceis”
argumentou a Diretora da Creche ao que todos responderam com um aceno de
cabeça. Os pedidos variaram de salada e suco até hambúrguer e refrigerante.
Depois de muitas mordidas em silêncio, a Diretora decidiu que era hora de
escutar a voz de alguém. Por isso, perguntou o que tinha acontecido aos irmãos
mais velhos da Menina e do Menino. O irmão de Lívia resumiu os fatos em duas ou
três frases, usando uma voz quase sem vida, enquanto o irmão de Francisco achou
uma boa ideia entrar nos mínimos detalhes. O silêncio anterior deixava toda
situação cem vezes pior, fazia com que toda preocupação envolvendo Francisco e
o Melhor Amigo preenchesse os pensamentos de cada um deles. Ele descrevia
detalhadamente como ficou o lugar depois da explosão quando o celular de Lívia
tocou. Eram os pais dela e de Francisco. Eles estavam lá embaixo com a Miúda –
a irmã mais nova da Menina – e precisavam que alguém fosse busca-la. O irmão
mais velho de Lívia levantou-se no mesmo instante e foi pegar a Caçula da
família, voltando 20 minutos depois. Nesse meio tempo, o Irmão Mais Velho do
Menino também desceu a pedido da Mãe. Ela queria ter certeza que o Filho Mais
Velho estava realmente bem. Foram tantos abraços e beijos que quem observava já
tinha perdido as contas.
Quando os três voltaram, todo mundo já tinha terminado de almoçar. Os primogênitos
das duas famílias, então, sentaram a mesa apenas para terminar de comer o
almoço, agora, já frio. Sentada no colo do Irmão Mais Velho, a Caçula da
família de Lívia, com seus dois aninhos de idade, ajudava o irmão a comer. Ela
pegava as batatas fritas que estavam ao seu alcance e colocava na boca do Irmão,
ao que ele respondia com um “abrir de boca” sonoro. Por razões que só o coração
entendia – todo mundo sorria ao observar aquela menininha Miudinha, porém tão
determinada, oferecendo batata a batata para sua Pessoa Preferida. Segundo o o Avô da Menina, estava claro para ele que em vidas passadas os dois
foram pai e filha. “Eu não posso discordar” comentou Lívia quando ouviu aquela
história pela primeira vez. O Pai deles, no entanto, não concordava, afirmando
que em qualquer vida a Miúda seria Filha dele e da Mãe da Menina. Cada um deles
estava imerso naquele momento feliz quando o telefone de Lívia mais uma vez
tocou. O Pai da Menina pediu que todos descessem. Para ele, não fazia sentido
tanta gente esperar por notícias de Francisco e de seu Melhor Amigo. Hospital
não é lugar para criança, nem para adolescente, nem para adulto-jovens – essa
última categoria englobava os irmãos mais velhos, ambos com seus já completos
19 anos.
- Tudo bem, você
pode ficar, mas, por favor, mantenha o celular sempre próximo e mande notícias
de hora em hora. – Pediu o Pai da Menina. Ao final da conversa, ficou decidido
que Lívia e o Pai de Francisco permaneceriam no hospital, no aguardo por
notícias do Menino e de seu melhor amigo. Os demais foram para casa, na
tentativa de recarregar a bateria depois daquele dia tão angustiante.
Já passava das sete da noite quando
o médico responsável chamou pelos responsáveis de Francisco.
- Então? –
Perguntou o Sogro da Menina.
- Ele está bem.
Agora é só aguardar... – O que veio depois de “aguardar” entrou por um ouvido e
saiu pelo outro. Saber que Francisco não corria nenhum risco de vida ajudou
Lívia a respirar aliviada. Agora só faltavam notícias do Melhor Amigo do Menino,
que ainda estava em cirurgia, para que o peso daquele dia pudesse ser retirado.
O Pai de Francisco foi o único a visita-lo naquela noite. Os demais, no caso,
Lívia, teriam que voltar amanhã. E foi o que ela fez.
Na tarde do dia seguinte, toda
família de Francisco foi visita-lo. A Menina sabia e entendia que eles tinham
prioridade. Por isso, não se importou em esperar um pouco mais. Porém, esse
pouco mais virou “muito mais”, quando, por meio de uma votação, que reunia a
família dos dois e o par dos outros irmãos, ficou decidido que Lívia seria a
última a visitar Francisco naquele dia.
- Até meus pais
têm prioridade? – Perguntou a Menina, não entendendo a lógica daquele grupo
gigante. – Tudo bem. Então, vou para casa pegar uns livros para ler enquanto
espero minha vez...
- Uns?
- Uns. Do jeito
que as coisas andam – só ano que vem poderei vê-lo. – O Pai da Menina riu com o
exagero da Filha. Era mais de sete horas da noite quando a Menina chegou o
momento de encontrar Francisco pela primeira vez depois de todo aquele caos. Todos
ali presentes – com exceção de Lívia, obviamente – concordaram que seria uma
ótima ideia se a visita dela fosse surpresa. Por isso, não avisaram para o
Menino que a Menina estava no hospital, bem pertinho dele, esperando para vê-lo
desde o início da tarde. Além disso, Lívia ganhou dos pais de Francisco o
direito de ser a acompanhante daquela noite.
- Cuide bem do
meu Filho, minha Nora! – Pediu a Mãe de Francisco. O Irmão Mais Velho de Lívia
e quase todos os presentes riram da expressão que a Menina tinha no rosto. Ela
estava, claramente, constrangida com aquelas palavras, o que era difícil de acontecer. Quando os demais
visitantes foram finalmente embora, Lívia pegou a bolsa que estava na cadeira
vizinha a sua na sala de espera, colocou no ombro e foi até o quarto de
Francisco. Antes que ela pudesse entrar, entretanto, o som desconsolado de
alguém chorando interrompeu a Menina. Ela sabia que era Francisco. Sabia que
era ele, porque todo mundo que saía do quarto em que estava internado
enfatizava como o Menino parecia otimista, principalmente, depois de saber pelo
Médico responsável que o Melhor Amigo estava em estado crítico. Porém,
Francisco não se mantinha otimista todo aquele tempo. Na verdade, ele estava com
medo de a realidade ser muito pior do que as expectativas que criara, do que a
esperança que tentava a todo custo manter-se viva, mas o Menino não queria
preocupar os Pais. Não queria que os outros enxergassem a fragilidade, a dor
que sentia. Por isso, ao invés de entrar naquele momento, a Menina permaneceu
do lado de fora do quarto, com as costas apoiada na parede, fazendo companhia
ao Menino – mesmo que ele não soubesse - naquele corredor mal iluminado, em que
uma das luzes piscava ritmicamente, sem saber se deveria ficar acesa ou se
desligar-se seria a melhor opção – como acontecia com a esperança incerta de muito
daqueles pacientes que estavam internados na unidade de terapia intensiva (UTI).
Fazendo coro silencioso as lágrimas de Francisco, Lívia se viu chorando junto.
Quando o Menino finalmente dormiu, a Menina entrou devagarzinho no quarto
para cobri-lo, porque conhecendo Francisco do jeito que ela conhecia, era bem
provável que ele estivesse descoberto. Em casa ou nos dias que dormia na casa
dela, o Menino quase nunca se lembrava do cobertor, sendo, sempre, acordado no
meio da noite pelas muriçocas. Hoje, Lívia tinha certeza, não seria diferente. Francisco
estava com um pijama do hospital que cobria tanto os machucados dos braços,
quanto o tórax enfaixado, a perna esquerda engessada e, como ela imaginava -
descoberto. Aqui, ele não acordaria pelas picadas de insetos, mas o frio do
ar-condicionado poderia fazê-lo despertar de madrugada. Por isso, a Menina
ajeitou o edredom do Menino, arrumou seu cabelo bagunçado, dando um beijo em
sua testa, e deitou no sofá-cama disponível para acompanhante, adormecendo logo
em seguida.
A manhã do dia seguinte chegou mais cedo do que a Menina esperava. O
Menino, no entanto, dormia um sono profundo, vencido pelo desgaste físico e
emocional dos últimos dias. Lívia, então, arrumou suas coisas, cobriu Francisco
mais uma vez, dando mais um beijo em sua testa, e saiu sem fazer barulho. Quando
os Sogros chegaram, ela não contou o que realmente tinha acontecido. A Menina
preferiu dizer que, quando abriu a porta do quarto, Francisco já estava
dormindo. “Acho que foi um dia longo”, comentou. Os pais dele, então, decidiram
não falar para o Filho que a Nora estivera ali à noite toda, ao seu lado.
- Obrigada! –
Agradeceu Lívia, afirmando que voltaria mais tarde, depois do pôr do sol.
- Acho que você
pode me substituir, então?! – Pediu a Mãe de Francisco. – Você vem à noite e se
ele estiver acordado, pode ficar até amanhã... O que acha? – A Menina sorriu,
aceitando na mesma hora.
Apesar de o Pai ter se oferecido para ir busca-la no hospital, Lívia
preferiu usar os pés. Ela queria sentir o ar da cidade e observar se alguma
coisa tinha mudado desde a última vez que caminhara. Ao invés de seguir pela
principal, a Menina fez o maior caminho, passando pela frente de lugares
recém-inaugurados. Dentre eles, o que mais lhe chamou a atenção foi uma
simpática lojinha que vendia todo tipo de flores, a “Cores do Jardim”.
- Gostou de
alguma? – Perguntou a Vendedora, percebendo o encanto da Menina pela loja.
- De várias.
- Em quem você
está pensando?
- No meu
namorado. – Respondeu a Menina, ainda com os olhos fixos naquelas rosas tão
cheias de vida. - Será que ele gostaria de receber uma rosa branca? – Perguntou
Lívia mais para si mesma do que para a Atendente.
- Adoraria! –
Respondeu a Vendedora animada. – Quem não gostaria? – Convencida, a Menina
decidiu, então, levar quatro rosas brancas, três para enfeitar a sala de casa e
uma para dar para Francisco mais tarde, quando fosse ao hospital. Lívia
agradeceu e sem fazer mais paradas foi para casa.
A Menina chegou ao hospital perto
das oito horas da noite. A Mãe de Francisco estava lá para recebê-la, enquanto o
Pai dele esperava no carro pela Esposa. Por isso, as duas não puderam conversar
o tanto que gostariam, trocando uma ou duas frases antes de seguiram caminhos
opostos. Hoje, o corredor não estava mal iluminado. A luz, que antes piscava,
fora substituída por outra mais clara – tão clara que cegava quem olhasse para
cima. O quarto do Menino era o terceiro do lado esquerdo e era o único, daquela
ala do hospital, ocupado. Ao ficar frente a frente com a porta corrediça, em
que o nome “Francisco” estava escrito, Lívia respirou fundo, na tentativa de
acalmar seu coração ansioso. Antes de entrar no quarto, no entanto, a Menina bateu
na porta:
- Pode entrar.
Estou indecente. – Respondeu Francisco, fazendo Lívia sorrir. Sem fazer
barulho, a Menina abriu a porta com a mão esquerda, enquanto a mão direita era
mantida por trás das costas escondendo a rosa branca que comprara mais cedo. Se
fosse cena de filme, novela ou série – americana, brasileira ou coreana, a
câmera, com certeza, mostraria o “abrir a porta” do ponto de vista do Menino e,
em seguida, a vista do ponto em que a Menina estava. Os dois sorriram ao se
encontrarem pela “primeira vez” desde o acidente.
- Pensei que
você estivesse indecente. – Comentou Lívia com expressão sapeca no rosto.
- Bem que você
gostaria. – Respondeu Francisco. A Menina deu alguns passos, parando a um metro
do Menino. Ela ainda escondia a rosa branca, mas agora as duas mãos seguravam o
filete da flor por trás das costas. – O que você tem aí? – Perguntou Francisco,
curioso. Ele tentou alcança-la com a mão esquerda, mas não conseguiu.
- Feche os
olhos. – Pediu Lívia.
- Pronto. Estou
de olhos fechados.
- Jura? Não sei
se acredito. – O Menino beijou os indicadores, como quem faz uma promessa. A
Menina, então, deu o último passo que faltava para alcança-lo. Ela sentou na
beira da cama, ao seu lado, e segurou a rosa com as duas mãos entre o espaço
que separava seu peito do peito de Francisco.
- Pode abrir. – Ao
ver a rosa, o Menino sorriu de orelha a orelha. A Menina nunca apostava no
óbvio e, por isso, os presentes dela eram os preferidos dele. Depois de uma
fração de segundo de inércia, Francisco segurou as mãos de Lívia entre as suas
e sentiu seu coração correr dentro do peito. A Menina, então, sentou mais perto
e finalmente pôde abraçar o Namorado. Foi um abraço demorado, daqueles que
dizem para o coração “agora eu estou aqui com e para você”, seguido de uma
série de beijos rápidos, que logo se transformou em um beijo longo - beijo de
quem mata a saudade do outro e de quem leva o ar embora.
- Que saudade de
você, meu Amor. – Confessou Francisco.
- Que saudade de
você, meu Amor. – Confessou Lívia. Os dois novamente se abraçaram por um bom
tempo. Os olhos do Menino se encheram de lágrimas. Ele não sabia se devia ou
não colocar toda aquela dor pra fora. Por isso, quando se afastou da Menina, o
Menino enxugou os olhos, antes que as lágrimas transbordassem. Lívia esperou,
Francisco permaneceu em silêncio. Lá fora, o céu dava indícios de que a noite
seria de chuva forte. Talvez, não fosse sinal de chuva e sim de tempestade.
- Você sabe como
a Chuva se forma e deixa quase todo mundo de cabelo em pé? – Perguntou a
Menina. O Menino franziu o cenho, sem saber qual a direção que aquela conversa
tomaria. Lívia sorriu antes de esclarecer seu ponto – Eu gosto da chuva. –
Refletiu a Menina, fazendo mistério. O Menino olhou para o lado de fora, através
da janela, bem na hora que explosão de luz do relâmpago, seguida pelo barulho de trovão, ecoou pela cidade. A Menina acompanhou seu olhar – Pena que a
gente só consegue enxergar o desfecho. – Francisco voltou a olhar para Lívia,
cada vez mais intrigado.
- O desfecho? –
Perguntou o Menino.
- O desfecho – Repetiu
a Menina. – Os pinguinhos de água caindo, encharcando as pessoas, os animais,
as plantas, os fungos - a vida, em todas as suas formas - e as formas que não
têm vida, como os carros, os edifícios, os monumentos históricos... – Ao falar
dos monumentos históricos, os olhos de Lívia sorrindo, lembrando-se daqueles
que davam vida aquela pequena cidade. – De pinguinho em pinguinho a chuva vai
deixando tudo molhado como se dissesse: “É hora de recomeçar! É hora de tentar
de novo!”. – Ela parou por alguns segundos antes de continuar. – Sabe como
nossos avós repetem quase todo dia que o Sol sempre voltará a nascer no dia
seguinte? Mesmo que tudo tenha dado errado no dia de hoje? Como se fosse um
recomeço?– Francisco assentiu com a cabeça, tentando, sem sucesso, entender
aonde Lívia queria chegar – Então, se depois da chuva sempre vem o sol Explicou
a Menina, depois da chuva é o começo de um novo ciclo. Talvez a gente tenha
mais oportunidades, mais recomeços do que a gente é capaz de perceber... – Concluiu
a Menina, percebendo que existia a virada do ano, o início de uma nova semana,
as estações do ano e assim por diante... – Você sabe como se forma a chuva? –
Lívia repetiu a pergunta, de maneira abrupta, deixando de lado os vários ciclos
da vida, mas, desta vez, Francisco sabia que aquela era uma pergunta retórica. Por
isso, esperou que ela continuasse – A água é aquecida com a ajuda do Sol,
evapora e se transforma em vapor de água. Claro que não é apenas o Sol que faz
esse papel, outros fatores estão lá para auxilia-lo nesse árduo trabalho4.
– Francisco sorriu. – O que foi? – Perguntou Lívia sem entender o motivo daquele
sorriso.
- Você sabe
contar histórias como ninguém. É uma autêntica contadora de história. – A Menina
sorriu, beijando o Namorado mais uma vez. Porém, antes que o rumo daquela conversa
tomasse outras rotas, Lívia voltou à formação da chuva:
- Onde paramos?
Hum...
- Nos auxiliares
do Sol.
- Nos auxiliares
do Sol – Repetiu a Menina. – Exato. A água se transforma em vapor de água. – Lívia
parou por muitos segundos, decidindo que frase deveria usar para continuar aquela
estranha história. Assim que organizou as palavras em seus pensamentos, ela recomeçou.
– O vapor de água, então, se mistura com o ar e - por ser menos denso - começa
a subir, formando as nuvens de tamanhos e formas variados que enfeitam o céu4.
No entanto, essa ascensão dura apenas tempo suficiente, porque, em altitudes mais
elevadas ou ao encontrar massas de ar frias, o vapor de água se condensa,
voltando a ser água, passando a ser chuva4. – O Menino ainda não
entendia o que a Menina queria com aquela história, mas em seguida descobriria.
– A água é pesada demais para se sustentar no ar, assim como a tristeza é pesada
demais para se sustentar nos olhos. – Então, o choro que Francisco guardava
para si mesmo e escondia dos outros transbordou, inicialmente, em forma de chuvisco
para depois transformar-se em tempestade. – Por isso, as nuvens carregadas se
desmancham em chuva. Por isso, a dor deveria ser desmanchada em lágrimas. – O
Menino agora chorava alto, tentando expulsar toda aquela dor lancinante que preenchia
seu peito, que sufocava sua respiração. – Para que algo semelhante àquele
cheiro deixado pela terra molhada pós-temporal, o Petricor4, que todo
ou quase todo mundo adora, possa ser sentido. – Lívia, então, tirou as mãos de
Francisco do rosto e abraçou o Namorado mais uma vez. Não foram necessárias
mais palavras para consola-lo. Naquela noite de trovões e relâmpagos, o silêncio
e o abraço da Menina foram os melhores amigos de alguém que precisa pôr pra
fora o que tentava esconder a três dias. Se o vapor de água transformava-se em
chuva em altitudes mais elevados ou ao encontrar massas de ar frias, a dor do
Menino se desfez em lágrimas ao encontrar aquela história, inicialmente, tão
estranha da Menina. Talvez, o nariz entupido e os olhos inchados fossem o
Petricor das lágrimas, aqueles sinais de que depois da chuva sempre vem o sol.
Referências bibliográficas:
4Adaptado de “Sua pesquisa.com.” Chuva. Disponível em <https://www.suapesquisa.com/geografia/chuva.htm>
Acessado em 11 de Novembro de 2018.
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