Ficção e realidade se misturam, não é mesmo?
Francisco e Lívia assistiam “Ensaio de um adeus” quando a janela
bateu com força por conta do vento. Os dois pularam do sofá assustados. O vento
precedia a tempestade que viria mais a noite.
- O céu vai se desmanchar em chuva. – Comentou Lívia,
levantando-se para fechar a janela. Francisco riu.
- Desde quando você não gosta de uma tempestade poética? –
Perguntou ele, irônico. Lívia parou onde estava e a meio passo da janela, pegou
a almofada da cadeira que ficava ali perto e jogou no namorado. – Ai! –
Reclamou ele. – Grossa.
- Desde nunca. – Respondeu ela, conseguindo finalmente
trancar a janela, depois de três ou quatro tentativas frustradas. – Mas, meus
pais não são grandes fãs da chuva aqui dentro de casa, principalmente quando se
trata desta poltrona histórica. – Lívia deu dois toques no encosto da cabeça antes
de voltar a sentar ao lado dele.
- Quantos anos têm a “poltrona histórica”? – Perguntou
Francisco, imitando o jeito dela.
- Mais do que você e eu juntos. Mais de 38 anos, acredita?
É engraçado como trazemos do passado algumas coisas só para ele permanecer no
presente e quem sabe, futuro. – Disse Lívia, mais para si mesma do que para
Francisco e ele sabia disso.
- Que histórias terão a poltrona histórica pra contar? –
Perguntou ele, fazendo-a sorrir.
- Muitas. Não caberiam em um filme. Imagine em quantas
cenas de outras histórias ela já esteve...
- Será que um dia teremos nossa poltrona? Cheia de segredos
para guardar? – Perguntou Francisco. Lívia olhou em seus olhos, deixando o
móvel antigo em segundo plano. Ela tirou os fios de cabelo bagunçado dos olhos
do namorado e deu um beijo em seu rosto.
- Quem sabe... – Os dois sorriram, curtindo o momento de
pura cumplicidade. – Mas, por enquanto que não temos, vamos voltar a assistir
“Ensaio de um adeus”. – Falou, colocando as pernas em cima das dele. Francisco
ainda a olhava com sorriso nos olhos. Sorriso que só se sorri em momentos como
aquele. Momentos que tinham mais vida que uma vida. – O que foi? – Perguntou
ela, retribuindo o sorriso. Francisco a beijou na testa, puxando-a para mais
perto de si e os dois voltaram finalmente a ver o filme, que estava em sua
última cena.
Mia saía do
colégio com os papéis assinados dentro da bolsa, em um envelope cor de rosa.
Não um rosa delicado, mas um rosa que poderia ser visto pelo vira-lata que
descansava do outro lado do pátio do estacionamento. Parece que o dia não
traria surpresa para ele, afinal de contas... Ela poderia finalmente viver
outras histórias. Ao virar a direita, entretanto, Mia deu de cara com Martin.
Os dois não se falavam já fazia algum tempo. Meses, talvez.
- Você. – Falaram
em uníssono. Ela pôs as mãos no bolso do casaco para disfarçar o nervosismo.
Ele coçou a cabeça tentando fazer o mesmo. Ao ver o envelope chamativo que a
garota levava consigo, Martin não teve dúvida: era por ali que começaria a
conversa.
- Documentos? –
Perguntou ele, incerto sobre o início da conversa. Ela assentiu. – Documentos
importantes? – Insistiu ele.
- Consegui
finalmente os papéis que faltavam para a transferência de colégio.
- Que ótimo! –
Falou Martin tentando disfarçar a decepção. O constrangimento deles era
visível. Até o passarinho que cantarolava na árvore do estacionamento podia
perceber a ansiedade dos dois.
- E você, o que
faz por aqui? Pensei que você estaria – Que palavra ela usaria? – Sei lá. - Ou
seria melhor usar palavras? – Bem... Bem longe.
- Ainda não. Quem
sabe amanhã? – Respondeu ele de maneira
pausada.
- Amanhã. –
repetiu sem graça. - Bacana. – Mais
alguns segundos de constrangimento foram suficientes para Mia reconhecer que
precisava decidir se ficaria ou iria embora. Ela decidiu por ir. – Até a
próxima! – Despediu-se ela. Mas antes que pudesse ir embora de vez, Martin a
chamou pelo nome.
- Mia, espera! –
Ela virou surpresa. Não esperava isso dele. Os dois diminuíram a distância em
dois passos e quando Martin voltou a falar, só estavam ele e ela naquele lugar
cheio de saudade. Só os dois como sempre foi quando estavam juntos nas muitas
vezes que decidiram que passar o tempo na companhia um do outro era o melhor
passatempo. – É. Eu. Nós. – Começou. Durante muitos segundos ou alguns poucos
minutos, as palavras não fizeram sentido, tornando o momento ainda mais
embaraçoso. Quando finalmente descobriu por onde recomeçar, Martin limpou a
garganta, perdendo mais algum tempo para os dois – Oi! - Disse finalmente,
transbordando toda saudade que sentia pelo som e tom daquela única e solitária
palavra.
- Oi! – Respondeu
Mia. Sua voz também carregava saudade. Mais do que isso, carregava a mistura de
saudade e dor. Dor que o tempo ainda não curara. Dor que transbordava pelos
olhos.
- Será que eu
posso voltar no tempo? – Perguntou o garoto de maneira retórica. Triste, Mia
sorriu, sabendo que o tempo perdido por eles perdeu-se no tempo de outras
histórias. - É tão estranho não ter você por perto. – Falou Martin enfatizando
o “tão”. A voz ainda transbordava o que ele guardava há tanto tempo dentro de
si.
- É estranho ter
você tão longe. – Concordou ela, de maneira triste.
- Eu sinto tanto a
sua falta. – Revelou Martin, o que pegou Mia de surpresa. Mais uma vez. - A
gente passou por tanta coisa juntos... – Ela mais uma vez sorriu com a tristeza
nos olhos.
- Tanta coisa boa.
– A voz de Mia falhou nas primeiras palavras. Todo o tempo que os dois
compartilharam passou como um longa-metragem em alta velocidade dentro de si.
Não caberia em um único filme. E, até o silêncio descansar, os minutos correram em
direção ao futuro, sem pressa para acabar – Algumas ruins – Continuou ela,
depois de respirar mais de duas vezes. Ao fundo, o passarinho que antes cantava
alegremente pareceu entender que precisava ir embora, preencher outros silêncios.
Ela enxugou uma lágrima que transbordara sem permissão. Ele tentou conter as
suas. – Eu também senti a sua falta. – Finalizou, deixando mais uma lágrima
escapar. Martin se aproximou, enxugando com o polegar direito as lágrimas que
desciam pela bochecha de Mia.
- Não chora. –
Pediu baixinho. Ela sorriu e em resposta fez o mesmo, enxugando as lágrimas que
molhavam o rosto dele. Ele fechou os olhos e quando voltou a abri-los percebeu
pela primeira vez o banco atrás dela e, depois, o papel que o mantinha em equilíbrio.
Os dois o tinham colocado ali em uma tarde distante, quando decidiram que
passara da hora de alguém resolver o balançar incômodo daquele móvel antigo. Ao
encontrar aquele trecho de saudade eternizada diante de seus olhos, Mia se
juntou a Martin em um silêncio ensurdecedor. Os dois passaram um tempo infinito
contemplando um de seus feitos, revivendo o momento guardado no baú de memórias
mais uma vez. Quando ela voltou a olhá-lo nos olhos, decidiu que era hora de se
despedir...
- Adeus, Martin. – Trêmula e incerta, Mia afastou os fios de
cabelos dos olhos do garoto e depois beijou seu rosto. Martin segurou a mão dela e apertou, sabendo que
aquele poderia ser um adeus. Sem volta. Sem recomeços. Ela olhou para baixo,
sorrindo tristemente, e apertou a mão dele de volta.
Ao encontrar seus
olhos pela última vez, Martin encostou a testa na dela e em tom de sibilo
falou pela primeira vez:
- Eu te amo! – Era
o fim de um amor não vivido. Não por falta de amor, mas por excesso de medo.
- Eu também te
amo. – Respondeu Mia, sussurrando. Então, ela foi embora, deixando-o para trás.
Ou, talvez, ele tenha decidido ficar, deixando-a seguir em frente. Naquele momento, não
importava mais.
A câmera passou a
filmá-los de cima, acelerando o tempo durante alguns segundos, enquanto uma voz
conhecida falava sobre recomeços. Talvez, em um futuro distante, os dois se
reencontrem, tomando café em uma livraria. Talvez, eles decidam recomeçar a
história sem medo, sem excessos ou faltas. Ou, talvez não.
“FIM” dizia a TV. Apesar disso, Lívia e Francisco permaneciam em
silêncio. Cada um com seus pensamentos. Ele pensava em como nem todas as
histórias de amor tinham finais felizes, deixando a dor da saudade como
lembrança, a primeira vista, dolorosa. Ela acreditava que, apesar de toda a dor
da despedida, os personagens do filme tiveram o único final feliz que poderiam
ter. Sem mágoas ou ressentimentos. Sem falsas esperanças. Mas com a chance de
deixar o passado para trás em uma história finalmente resolvida.
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