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Da série: de onde você veio, Menina? E o seu amigo, o Sábio?

“A Menina e o Sábio – Saudade”

Era 31 de Maio de muitos anos antes, Maio de 2013. Um acidente de carro deixara o Sábio e a garota dos olhos sorridentes (Lívia) hospitalizados. Na madrugada do quarto dia, o Sábio decidiu visitá-la, sem saber que aquela seria a última vez que a veria em um longo tempo. Ele pegou uma cadeira e aproximou-se da cama. Ela ainda permanecia ligada a muitas máquinas. Seu caso era complicado, muito mais do que o do Sábio.
- Não era para ser assim. – Disse o Sábio entre soluços. – Não era. – Ele tinha os olhos fechados quando sentiu a mão dela apertar a sua. Ele abriu os olhos e tentou sorrir para ela, sem sucesso.
- Ainda vamos nos ver. Tenho certeza. – Ela falava com dificuldade e dizer apenas aquelas palavras lhe custara minutos de tosse. Ela o olhava nos olhos e sentia a dor dele como se fosse sua. Era doloroso demais vê-lo assim. Não queria que ele sofresse; não dessa ou de outra maneira. Mas Lívia sabia que os sentimentos precisavam transbordar, pois quando encarcerados, eles sufocavam a alma e descoloriam os olhos. Por isso, ela não falava para ele não chorar ou sofrer. – “Eu conheço você” – Repetiu e mais uma crise de tosse tirou um pouco do pouco fôlego que tinha. - Lembra? – Perguntou ela com dificuldade. O Sábio sorriu ao ouvir uma das primeiras frases que escutara de Lívia quando eles se conheceram.
- Como poderia esquecer? – Perguntou ele, mais para si mesmo. – É um jeito estranho de se começar uma conversa. – Ela riu um pouco, enquanto as lágrimas, agora de alegria, começavam a molhar todo seu rosto.
- É original. – O Sábio riu.
- Você é original. Sempre foi.
- É uma das minhas muitas qualidades – Os dois riram em meio às lágrimas, em uma mistura de tristeza e felicidade. Lívia voltou a tossir.
A tosse se estendeu por muito mais do que muitos minutos. O Sábio entendeu o que ela quis dizer com “ainda vamos nos ver. Tenho certeza”. Ele sabia que ela estava se despedindo, pelo menos por enquanto, pelo menos por um tempo. Os minutos se arrastaram até que ela recuperasse o fôlego. E, mesmo quando recuperara, os dois permaneceram, durante um bom tempo, em silêncio, compartilhando os acordes da calmaria juntos. Ele beijou sua testa e quando a olhou nos olhos dela mais uma vez, ouviu as mesmas palavras de um dos primeiros encontros:
- “Eu sinto”. – O Sábio sorriu. – Até hoje. – Completou. Ela estendeu a mão direita e alcançou o seu rosto. O Sábio pôs a mão esquerda sobre a de Lívia, segurando-a. – Eu amo você!
- Eu também amo você, meu Amor. Meu Grande Amor. – Lívia sorriu.
- Meu Grande Amor – Concordou ela. O Sábio segurou sua mão entre as suas e levou aos lábios, para beijá-las uma última vez. No segundo seguinte, os dois se olharam nos olhos e disseram em silêncio tudo o que as palavras não alcançariam naquele momento. O último momento antes de escutar o monitor cardíaco avisar que ela tinha ido embora. Os médicos chegaram antes mesmo de o Menino piscar, tentando reanimá-la, mas ele sabia que era tarde demais. Ela não estava mais ali e nada poderia ser feito. Enquanto a equipe médica tentava reanima-la uma, duas, três vezes, o Menino permaneceu parado. Suas pernas tremiam, suas lágrimas molhavam suas bochechas e depois sua camisa. Lívia se fora naquela madrugada de Maio, hoje tão distante. E nada do que ele fizesse, do que os médicos fizessem, traria Lívia de volta. Um enfermeiro, que ele não viu chegar, tentava mantê-lo em pé – o Menino nem ao menos percebera que estivera prestes a cair – ao mesmo tempo em que tentava acalmá-lo. Depois de uma última tentativa, o homem alto que coordenava a equipe olhou para os olhos inchados do Sábio e disse tristemente:
- Sinto muito...
- Não, não, não, não, não, não, não, não, não... Por favor, por favor, não, não, não... – As pernas do menino cederam de vez e nem mesmo a ajuda do enfermeiro foi capaz de mantê-lo em pé. Sentado sobre as pernas e com o tronco abaixado, escondendo o rosto, o Menino transbordava toda a dor que sentia. Ele queria gritar, mas não sabia como. Estava completamente perdido naquele chão gelado do hospital... 

(Continua...)

- Será que ainda vamos no ver?  – Perguntou o Sábio para o vazio daquele dia de Maio. Um Maio de tantos anos depois. Ele segurava os óculos com uma das mãos, enquanto a outra enxugava uma, duas, três ou mais lágrimas que lhe escapavam pelos olhos. A Menina o observa de longe, sem intenção de se aproximar. – Eu não sei se você já soube Lívia, mas eu encontrei uma amiga nos últimos tempos... Não estou mais só. Ela é tão doce... Eu a chamo de Menina. Queria que você a conhecesse. – Ele parou um pouco de repente, sentindo-se triste. A Menina geralmente aparecia em momentos como este. Era estranho não tê-la por perto. – Queria que ela te conhecesse também... Mas, talvez não seja uma boa ideia, porque depois que você foi embora, minha memória começou a ir embora também. – O Sábio fez um esforço para lembrar nem que fosse por um segundo daquela época. – Eu mudei de cidade, de colégio, de amigos. Tudo mudou. Não sei o que aconteceu, não sei o porquê de não conseguir me lembrar dos detalhes daquela época... – Ele suspirou tristemente sentindo que todo o esforço que fazia ao tentar lembrar era em vão. – É tudo tão desbotado. O rosto de todos os professores, de todos os amigos, de todo mundo. Meus pais achavam que se eu fosse pra outro lugar, a saudade seria menos dolorosa. – O Sábio na época achara patético, porque o que faz a saudade, a distância não desmancha – Tão bobo pensar assim, né? – Ele sorriu sem realmente sorrir. – Durante um tempo, a saudade foi insuportável, depois ela tornou-se tolerável e agora parece ser uma parte boa do passado. – Ele enxugou mais algumas lágrimas antes de tirar do bolso uma antiga carta escrita por Lívia, mais ou menos 70 anos antes. Ela estava desgastada e um pouco suja. Um dia desses o Sábio derramara café ao relê-la pela enésima vez – Olha o que eu trouxe... – O Sábio mostrou para a frase do epitáfio, que dizia “o céu está em todo lugar” – homenagem dos pais de Lívia ao trecho preferido de um dos livros que a Filha mais gostava, escrito por Jandy Nelson, que revelava: 1Anos atrás, estava deitada no jardim da vovó e Big perguntou o que eu estava fazendo. Disse-lhe que olhava para o céu. Ele respondeu — Essa é uma concepção errada, Lennie, o céu está em todo lugar, começa aqui, aos nossos pés. – na esperança de que ela estivesse por ali e pudesse ver o que ele trouxera consigo – Trouxe para lê-la. A única carta que tenho sua, quase tudo que sobrou de nós dois. – Falou tristemente - Pais... Somos um pouco extremistas às vezes, não é? – Ele pôs os óculos e leu em voz alta, sem saber que a Menina estava ali:
- “Amor, saudade de ficar ansiosa por cada nova mensagem sua, de pensar ‘ligo ou não ligo? ’, de assistir aqueles filmes horrorosos que só você gosta. Saudade até das suas piadas sem graça e de suas besteiras de sempre. Saudade de você. Beijos, feio! Te amo! P.S.: sinto até saudade de nossas brigas”. Você se lembra dessa carta? – Ele parou como se esperasse uma resposta. Mas, infelizmente, ela não veio. – Perguntei o que você escreveria se não pudesse mais me ver. Você sorriu e escreveu em seu caderno. – Ele riu um pouco. – Passamos a tarde toda rindo, acrescentando mais mil e uma frases de saudade. – O Sábio guardou o bilhete no bolso e tirou uma rosa amassada do paletó, deixando-a ali, para ela, para seu grande amor. – Eu li esta carta mil vezes para perceber que a saudade estava nas pequenas coisas, nos pequenos momentos. A gente precisa de tão pouco para escrever boas lembranças, tão pouco... Você já dizia: “Queria voltar no tempo. Não para consertar meus erros, pra reviver alguns momentos”. E quando eu perguntava quais momentos, você respondia “aqueles que têm mais vida que uma vida e são tão simples quanto sorrir”. Eram os mesmos da carta. No final, eram sempre eles.
A Menina sorriu e desapareceu, deixando o Sábio sozinho. Ele ainda precisava conversar um pouco mais com ela, com Lívia, antes de ir para casa. 
- Será que um dia nos encontraremos mais uma vez sob o mesmo céu? – Perguntou o Sábio, agora sozinho.


1Jandy Nelson, “O Céu está em todo lugar”, Pg.183.

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